sábado, 20 de novembro de 2010

A criança (II)

“Mãe.”

“O que foi, Yuri?”

Yuri era o filho mais velho. O relógio na cabeceira da cama marcava 3:15 da madrugada.

“Não consigo dormir. Meu irmão não deixa.”

“Seu irmão está dormindo, Yuri. Nem chorando ele está.”

“O que foi?”, Santiago resmungou, acordando. “Quem está chorando?”

“Nada”, a esposa falou. “Fica dormindo, vou levar o Yuri pro quarto.”

“Não quero ir pra lá. Tenho medo dele.”

“Medo do seu irmão? Que maluquice é essa?”

Santiago então despertou de vez. A palavra “medo”, saída da boca do filho, acendeu uma luz amarela no semáforo de seus temores.

“Eu levo ele.”

Pegando o filho nos braços, Santiago foi sussurrando enquanto seguiam para o quarto.

“O Yago é seu irmãozinho. Não tem por que ter medo dele. Ele vai ser o seu melhor amigo quando crescer mais. Vocês vão brincar muito juntos.”

“Ele não dorme.”

“Que história é essa.”

“Ele não dorme. Ele não fecha o olho nunca. Eu vi.”

Os dois chegaram no quarto das crianças. Santiago acendeu a luz e foi ver o bebê. Yago estava imóvel, os olhos abertos sem olhar para lugar nenhum.

“Yago?”, Santiago colocou no chão o filho maior e pegou o bebê. “Yago, você está bem?”

Assustado, Yuri correu para a porta e ficou olhando de lá. Santiago agitou levemente a criança, que enfim piscou os olhos e chorou.

“Pronto, pronto”, Santiago procurou acalmar o bebê. “Passou, meu filho, passou. É o papai.”

Quando Yago parou de chorar, Santiago recolocou-o no berço e ficou acariciando-lhe a barriga até fazê-lo dormir.

“Venha para sua cama, Yuri. Seu irmão está dormindo.”

“Não está.”

“Pare com isso. Você não tem por que ter medo dele. É só uma criança. Vem cá. Vem.”

O menino, ainda que temeroso, veio ficar do lado do pai.

“Olha. Ele está dormindo. Vê? Nenhum problema. Se ele acordar de novo, você me chama. Combinado?”

Yuri foi se deitar. Estava morrendo de medo do irmão, mas não falou nada.

*


Desde o dia anterior Santiago não trabalhava no livro que estava elaborando para a igreja. Temia escrever uma coisa e ler outra, certo de que o problema estava em sua cabeça. Passou orando a manhã de sábado e pedindo a Deus que lhe desse paz e serenidade para realizar seus afazeres, e que afastasse qualquer presença obscura que lhe estivesse rondando, e a seus filhos.

Num momento a sós com a esposa, começou a falar.

“Você sabia que o Yuri está com medo do irmão?”

Estavam na cozinha. A esposa preparava o almoço. Estavam esperando um casal de amigos da igreja.

“Sabia”, ela respondeu. “Isso é ciúme. Ele tem ciúme do Yago. Pensa que vai perder a atenção dos pais. Isso é normal.”

“E o Yago está bem? Você notou alguma coisa diferente nele?”

“Diferente? No Yago? Não. O quê, por exemplo?”

“Nada.”

Santiago já não sabia o que dizer. Bastava o Pastor para duvidar de sua sanidade. Durante o almoço com as visitas, falou pouco e a todo instante ia ver o filho mais novo no berço. Yuri, o mais velho, ia junto todas as vezes.

“O que ele tem, papai?”

“Nada, Yuri. Seu irmão é novinho, só isso. É mais frágil. Precisa de mais cuidados.”

“Eu também fui assim?”

“Foi. Igualzinho.”

“Eu também ficava sem dormir com o olho aberto?”

“Não.”

“Mamãe disse que você cuidava de mim quando eu tinha a idade do Yago. E que agora não tem tempo, por causa do trabalho. Vai ver é por isso que ele fica de olho aberto.”

“É. Pode ser. Mas não fique pensando nisso. Se alguma coisa acontecer de novo, me chame. Ou reze para Jesus. Você ama Jesus, não ama?”

“Amo.”

“Pronto. Isso é suficiente. Se você ama Jesus de verdade, nada pode te acontecer de ruim. Você vai estar protegido. Agora vamos voltar para a sala, senão nossos amigos vão achar que não são bem vindos.”

Tomando da mão do filho mais velho, Santiago saiu do quarto. Não percebeu, no entanto, que Yago acabara de abrir os olhos.

*


Às cinco horas da tarde as visitas haviam ido embora. Cansada, a esposa de Santiago foi deitar-se, enquanto ele ficou na sala. Colocando sobre a mesa uma folha em branco de papel, Santiago rabiscou frases soltas como quem derrama ração na vasilha e espera o cachorro vir comer. Escreveu “amor”, “Yago”, “Jesus”, “família”, e depois fechou os olhos. Rezou para que, quando os abrisse, fossem exatamente essas as palavras que iria encontrar.

Então ouviu o grito vindo do quarto das crianças. Era a voz de Yuri, e Santiago, deixando para trás a folha sobre a mesa, levantou-se correndo. Ao entrar no quarto foi deparar-se com o filho mais velho, descontrolado, gritando como se as chamas do inferno lhe subissem pelas perninhas curtas, com o corpo curvado para dentro do berço e as duas mãos tentando estrangular o bebê que era seu irmão.

A cena apavorante conseguiria por alguns segundos congelar os movimentos de um aterrorizado Santiago. Mas não tardou para que ele avançasse para dentro do quarto, libertando Yago dos braços do irmão e atirando para longe o filho mais velho. Yuri cairia no chão gritando, contorcendo-se como se ardesse por dentro. Santiago, com um filho inconsciente nos braços e outro gritando no chão, chamou diversas vezes pela esposa. Não era possível que ela não estivesse ouvindo. Ao mesmo tempo o telefone começara a tocar insistentemente, como que aderindo a um complô contra a sanidade de Santiago. Gritando pela esposa e, agora, também por Jesus, o desesperado pai tentou dividir-se entre reanimar o filho mais novo e acalmar o mais velho. Estava, no entanto, fracassando em ambas as tentativas.

No outro quarto, a esposa de Santiago apenas dormia.

Deixando Yuri debatendo-se no chão, Santiago foi até o telefone com o bebê nos braços. Precisava chamar uma ambulância. O filho mais novo não estava respondendo, nem respirando. Ao tirar do gancho o fone que ainda tocava, ouviu a voz do Pastor.

“Santiago?”, disse ele. “Estava tentando ligar para você.”

“Me ajude”, Santiago gritou. “Os meus filhos. Pelo amor de Deus. Os meus filhos. Yago não está respirando. Pelo amor de Deus.”

“Calma, o que está acontecendo? Onde está a sua esposa?”

“Chame um médico. Yago precisa de um médico. Yago está morrendo. Pelo amor de Deus. Ele não está respirando.”

“Fique calmo, estou indo para aí. Estou levando um médico, não se desespere. Já estou chegando, Santiago, tenha calma.”

“Pelo amor de Deus. Pelo amor de Deus.”
   
*


Ninguém, no entanto, conseguiria chegar a tempo. A fatalidade, quando vem, não respeita portas fechadas, grades, preces. Quando quer, vem e estraga o bem mais sólido e duradouro. Encontra brechas. Derruba represas. Foi assim com Santiago. No momento em que o Pastor entrou em sua casa, trazendo a ambulância pedida, o bebê já estava morto. Não resistira e sufocara nas mãos do próprio irmão. Yuri, por sua vez, após a crise que o levara ao fratricídio, perdera os sentidos e só no hospital iria recuperá-los. E no hospital permaneceu, sob tratamento, enquanto Yago era posto num pequeno caixão e depositado numa cova.

Durante a cerimônia, Santiago chamou o Pastor para um canto. Contou-lhe toda a história. Falou do medo que Yuri sentia do irmão, e do ciúme que ele achava estar por trás desse medo. Falou do temeroso sentimento vivido, na noite em que os olhos abertos de Yago plantaram dúvidas no meio de todas as explicações que ele pudesse formular sobre o que acontecia dentro daquele quarto que era mais frio do que o restante da casa. Santiago contou tudo, até o momento em que tirou um filho das mãos assassinas do outro. O Pastor ouviu calado.

“E os papéis, Santiago”, ele então perguntou. “Não houve mais mensagens?”

“Eu estava esperando que o senhor perguntasse.”

Santiago então tirou uma folha de papel dobrada no bolso.

“Imediatamente antes da crise de Yuri começar, ontem, minha esposa foi dormir e eu fiquei na sala. Sentado à mesa, peguei essa folha de papel e escrevi Amor, Yago, Jesus, Família."

Santiago então olhou nos olhos do Pastor. Controlava-se para não chorar.

“E então, Santiago?”, o Pastou quis saber. “O que havia no papel?”

As mãos dele tremiam, quando desdobrou a folha e mostrou o conteúdo. No papel estava escrito, com a mesma letra de Santiago: “Agora eu quero o outro filho”.



 (Continua.)

sábado, 13 de novembro de 2010

A criança (I)

Santiago sentou e pôs-se a escrever.

“Senhor, pela graça alcançada eu agradeço. Pela saúde, pela cura e pela luz, eu agradeço. Agradeço pelos dias de sol, por meus filhos e por minha esposa. Agradeço e reafirmo que é minha maior alegria poder servi-Lo agora e sempre.”

Precisou tirar os óculos para limpar uma das lentes que embaçara. Quando os recolocou, ficou assombrado com o que viu escrito na folha de papel.

“Eu sou a treva. Eu trago a dor. Eu conheço você. Eu quero a carne, o sangue e a alma dos seus filhos.”

Não conseguiu acreditar no que acabara de ler. Precisou ler de novo. E de novo. Continuaria relendo indefinidamente, se a esposa não entrasse no quarto que usavam como escritório.

“Escrevendo?”, ela perguntou. “Quer que eu traga um cafezinho?”

Com as duas mãos ele escondeu o texto. Tentou agir naturalmente.

“Não”, respondeu. “Obrigado, minha querida.”

Tentou também sorrir. Lutou para que o canto da boca não tremesse. Ela colocou a mão sobre o ombro dele, demonstrando carinho, e deixou o escritório. Santiago leu de novo o texto diabólico, e passou a mão sobre o papel. Não estava enlouquecendo.

Foi até a sala. O filho mais velho, de cinco anos, assistia televisão. O mais novo estava no quarto, no berço, em paz. Santiago voltou para o escritório com um pensamento na cabeça. Sentou-se de novo à mesa e, depois de olhar fixamente a mensagem que não escrevera, tomou de outra folha. Desta vez, escreveu apenas uma palavra.

“Fé.”

E ficou olhando a folha. Nada aconteceu. A palavra permaneceu a mesma durante todo o tempo. No intervalo em que fechou os olhos e suspirou, no entanto, alguma coisa acontecera. Não era mais “fé” o que estava escrito no papel sobre a mesa. Santiago levou as mãos à cabeça, sem conseguir compreender. Era outra coisa. Com a sua mesma letra.

“Sangue.”

A palavra estava ali. Para quem a quisesse ver. Como se fruto de uma mente perversa, exibicionista. Santiago sentiu medo. Medo dos próprios pensamentos que não controlava, da própria fragilidade. O demônio avança sobre os fracos, já havia lhe dito o Pastor. Santiago era fraco. Mas não seria desta vez. Não quando parecia haver uma ameaça sobre sua família. Não. Pegou o telefone e ligou para o Pastor. Precisava falar, disse a ele. Pessoalmente. Agora.

Quando desligou o telefone, foi para o quarto. Estava vestindo-se para sair, quando a esposa entrou.

“Aonde vai?”

“Preciso falar com o Pastor”, tentou de novo sorrir. “Não demoro. As crianças estão bem?”

“Claro. Como poderiam não estar?”

Santiago beijou a esposa e saiu. A igreja ficava a duas quadras apenas de casa, iria a pé. Iria a pé e raciocinaria. Desceu sozinho os sete andares de elevador e, ao chegar na portaria, ouviu o rumor que vinha da rua.

“O que aconteceu?”, perguntou ao porteiro.

“Acidente. Alguém enfiou o carro debaixo do ônibus.”

O porteiro não sabia se havia feridos. Não podia deixar o serviço. Embora ficasse na direção oposta da igreja, Santiago foi até o acidente. Atravessou a rua, virou a esquina. Seguiu o fluxo da multidão. E encontrou o ônibus da linha 433 com a lateral parecendo engolir um Palio prateado. Havia mortos. A ambulância ainda não chegara, e as pessoas aproveitavam para fotografar os corpos no asfalto com seus celulares. Sem saber por que, Santiago tirou do bolso o celular e imitou a morbidez da multidão. Fotografou várias vezes, os destroços, os corpos, as manchas de sangue, e então afastou-se para conferir as fotos. Abriu no aparelho o arquivo onde estavam as imagens e descobriu que um novo susto o aguardava. Só havia fotos de seu próprio rosto. Nenhuma do acidente. Apenas o seu rosto, no lugar onde deveria estar a morte. Santiago passou a andar de um lado para o outro da calçada, confuso, com medo. Entrou então num botequim. Pegou um guardanapo e pediu ao balconista uma caneta. Com a mão trêmula, escreveu no guardanapo.

“Morte.”

E fechou os olhos. Esperou. Quando abriu-os, não se surpreendeu por encontrar outra palavra. O que o assustou foi a palavra encontrada.

“Santiago.”

Estava enlouquecendo. Ou isso, ou era um ataque. Estava sendo atacado. Algo estava, de qualquer forma, para acontecer. Já acontecia. Dando meia volta, Santiago caminhou às pressas na direção da igreja.

*


O bebê acordara chorando, e a mãe foi até o quarto. O filho mais velho foi junto.

“O que ele tem?”, perguntou.

“Precisa trocar a fralda”, respondeu a mãe, depois de examinar o bebê. “Pega uma nova pra mim?”

O filho mais velho pegou. Ficou olhando atentamente enquanto a mãe tirava a fralda molhada e limpava o bebê, antes de colocar a nova.

“Vai olhando mesmo”, a mãe falou. “Um dia você é quem vai estar fazendo isso.”

“Eu não. Minha mulher é que vai fazer.”

“Que é isso?”, a mãe riu. “Homem também cuida de criança.”

“E por que é só você que cuida dele? Por que o papai não troca a fralda e limpa o meu irmão?”

“Porque o papai tá ocupado. Mas ele limpou muito o seu xixi e o seu cocô, sabia?”

“Limpou nada.”

“Limpou sim.”

Quando terminou, a mãe pegou o bebê e ficou passeando pelo quarto com ele nos braços. O mais velho foi jogar fora a fralda suja na lata de lixo que ficava na cozinha, e na volta viu a mãe recolocando o menino no berço.

“Está frio aqui”, reclamou ela.

Depois de cobrir o bebê e certificar-se de que estava tudo bem, a mãe saiu do quarto. O outro filho ficou, olhando para dentro do berço. O bebê não chorava, mas também não estava dormindo. Tinha os olhos abertos. Sem saber por quê, o irmão mais velho sentiu medo e saiu do quarto.

*

A mão de Santiago tremia, enquanto ele tentava escrever no papel que o Pastor lhe entregara. Mas acabou conseguindo.

“Deus é nosso Senhor e está em todos os lugares.”

Santiago olhou para o Pastor. Depois olhou de novo para o papel. A frase permanecia a mesma.

“Você está preocupado com alguma coisa?”, perguntou o Pastor. “Está tudo bem em casa, no trabalho?”

Santiago não conseguiu falar. Não compreendia. Sentia-se ao mesmo tempo confuso e desanimado. O Pastor estava achando que não passava de loucura dele. Santiago temeu que ele estivesse certo.

“Desculpe tomar o seu tempo.”

“Não tem por que se desculpar, Santiago. Todo mundo tem o seu momento de cansaço. De exaustão. Todo mundo precisa de um descanso, às vezes. Lembra Eclesiastes, 4:6: ‘Melhor é a mão cheia com descanso do que ambas as mãos cheias com trabalho, e aflição de espírito’. Venha, vamos tomar um café.”

Santiago estava envergonhado. Quis recusar, mas não poderia ser indelicado com o Pastor, que passara o braço por seu ombro e o levava até a cantina da igreja.

Sobre a mesa, o pedaço esquecido de papel trazia agora outra mensagem.

“Trago a danação e o inferno para o coração de todos os homens. Uma das crianças já é minha.”

(Continua.)

domingo, 7 de novembro de 2010

oSabeTudo.com





A descrição de oSabeTudo é "um site voltado para centralizar conteúdo de qualidade, nosso objetivo é formar a maior comunidade colaborativa da língua portuguesa onde todos podem ganhar dinheiro escrevendo de acordo com seu trabalho".

A política do SabeTudo é remunerar os colabores por textos publicados, ainda que a remuneração seja praticamente simbólica. Fui conferir, e deixei por lá o meu "Manifesto pela legalização da burrice", texto de humor escrito há tempos atrás. Quem quiser conferir, está aqui: http://www.osabetudo.com/manifesto-pela-legalizacao-da-burrice/.

sábado, 6 de novembro de 2010

Shvoong




Shvoong é um site/rede social internacional de resumos. Nele é possível encontrar comentários e sinopses de livros, filmes, peças e o que mais o conhecimento humano conseguir criar. Desde 2007 faço parte dele, quando resolvi postar por lá alguns comentários de filmes que publiquei em meu antigo site, O Cisco Tonitruante. Pois essa semana recebi um mail do Shvoong, e a curiosidade me fez voltar lá e botar mais resumos. O link para meus textos é http://pt.shvoong.com/writers/mauriciolimeira/.

sábado, 30 de outubro de 2010

Resultado do sorteio

Apenas duas pessoas se interessaram pela coletânea Servidor das Letras: Dani Carrara, de São Paulo, e Rosa Magalhães, de Teresina. Solicito a ambas que enviem seus endereços para mauricio_limeira@yahoo.com.br. Cada uma receberá um exemplar. Não haverá novos sorteios.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Garganta da Serpente


Editado por Agostina Sasaoka, A Garganta da Serpente é um portal/rede social que vem desde 1999 publicando conteúdo literário (contos, poemas, artigos). Nesta semana, um conto inédito meu, "Gerações", foi publicado por lá. Para quem quiser conferir, está em http://gargantadaserpente.com/coral/contos/ml_geracoes.shtml.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Laços

Foi um espírito que avisou a ela que ele não prestava.

Mesmo assim ela casou.

Um mês depois, o marido pôs veneno na coca-cola e ela não resistiu.

“Eu não te disse?”, o espírito veio perguntar depois.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Família pula do terceiro andar para fugir do 'diabo'

Uma família de origem africana que estava assistindo a TV pulou pela janela de um apartamento no terceiro andar de prédio da cidade de La Verriere (França) com medo do diabo. Na inusitada fuga, um bebê morreu.

Horas depois, a polícia esclareceu parcialmente o caso: o incidente começou quando um grupo de 13 pessoas estava assistindo a TV na sala. Um homem que estava nu no apartamento ouviu um bebê chorando e foi preparar a mamadeira. A esposa, ao ver o marido pelado, começou a gritar: "É o diabo, é o diabo!".

Em socorro aos gritos, a cunhada do "diabo" o esfaqueou em uma das mãos. Ele saiu pela porta da frente, e, quando retornou, os demais moradores, desesperados com a presença do "maligno" na residência, então decidiram sair pela janela.

O "diabo" pulou também, carregando uma criança de dois anos no colo. Ao chegar ao chão, ele correu e se escondeu atrás de um arbusto. A criança, o "capeta" e outros familiares ficaram feridos. O bebê chegou a ser levado a um hospital, mas não resistiu à queda.

Investigadores não encontraram qualquer sinal de alucinógenos ou ritual macabro no apartamento, segundo reportagem da BFM TV. A polícia ainda espera esclarecer muitos detalhes da história.

(Fonte: O Globo, http://oglobo.globo.com/blogs/moreira/posts/2010/10/25/familia-pula-do-terceiro-andar-para-fugir-do-diabo-335255.asp)

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Além

“Esse papo de disco de vinil rodado ao contrário de novo?”

Meu amigo se chamava Eric. Igual ao Clapton, ele dizia desde os tempos de Colégio Pedro II. Já estávamos formados e ele continuava dizendo aquilo quando apresentado a alguém. Se era um idiota, então eu também era, já que andava com ele. A questão é que ele jamais perdera alguns costumes da adolescência. Um deles era encontrar em tudo manifestações sobrenaturais.

“Se não acredita, então ouve.”

Era um disco da Legião Urbana. Logo a minha banda favorita. Pois Eric estava com o bom e velho LP no toca-discos e botou para tocar, rodando porém o disco ao contrário.

“Escuta só.”

Escutei. Não ouvi, no entanto, nenhuma mensagem satânica, e disse isso a ele.

“Escuta de novo”, ele insistiu.

Escutei de novo, e nada.

“Não ouviu a expressão Oxalá Belzebu?”

Ele tocou a porra do disco dez vezes, e em nenhuma delas eu ouvi oxalá belzebu. Fui acusado então de estar inconscientemente bloqueando meus ouvidos porque gostava do Renato Russo. Argumentei que ele, Eric, é que estava ouvindo o que queria ouvir, porque era um fanático paranóico sugestionável. E ficamos por isso mesmo. Achei melhor, então, mudar de assunto.

“O que você acha que atingiu a cabeça do Serra?”

“Bem lembrado. Deixa eu te mostrar uma coisa.”

Ele então mostrou no computador o vídeo do incidente em Campo Grande e o momento em que o candidato à Presidência da República José Serra teve a cabeça atingida por alguma coisa durante uma manifestação. Até aí nada demais. Mas Eric não podia ter deixado de descobrir no vídeo alguma coisa que ninguém havia percebido.

“Tá vendo isso? Aqui, no meio da multidão.”

Como eu nada visse, ele então selecionou um trecho da imagem na tela, ampliou e melhorou a resolução para me mostrar aquilo de que tinha certeza ser o rosto de uma figura diabólica abrindo-se num sorriso.

“Está vendo agora?”

“Não.”

“Porra. Esses óculos servem pra quê?”

Na volta para casa, enquanto caminhava contra o vento numa noite que prometia chuva, me dei conta de que invejava a imaginação fértil de Eric. Sua crença quase obsessiva no sobrenatural era a maneira dele reagir à secura, à tristeza, à covardia e à falta de sentido de que é feita a nossa realidade. Enquanto estava ocupando-se com tanto afinco em correr atrás de fantasmas, não via o quanto estamos sozinhos nessa existência, e o quanto somos incapazes de fazer alguma coisa concreta para reverter essa situação. Por isso nos refugiamos em templos. Por isso acendemos velas. Por isso adotamos um cachorro. Por isso casamos com quem não temos afinidade, o que dirá amor.

Foi com esse espírito que cheguei em casa e me atirei na cama. Pesado, triste e sozinho, sequer acendi a luz. Mas acabei deixando escapar em voz alta um apelo.

“Sobrenatural. Se você existe, esse é um bom momento para mostrar isso.”

Esperava qualquer coisa. Qualquer uma. Um ruído. Um objeto caindo. Uma trovoada. Qualquer som ou visão estranha, que viesse do nada e sem explicações. Nada aconteceu, no entanto. Se existia mesmo, o sobrenatural deveria estar dormindo. Com isso eu acabaria me rendendo ao desânimo e adormecendo também.

Ao acordar, a enfermeira já estava diante da cama. Parecia surpresa.

“O senhor dormiu bastante hoje.”

“Dormi? Tive sonhos curiosos. Lembranças da juventude.”

“Alguma antiga namorada?”

“Não, um amigo. Um velho amigo, já falecido. Se gabava de ter nome de músico. Engraçado que, no sonho, lembrei até de um sujeito que foi candidato à presidência. José Serra. Lembra dele?”

“Não, senhor.”

“Não é do seu tempo. Também já morreu.”

“O senhor precisa sonhar com gente viva.”

“Pois é, minha filha. Mas a única pessoa viva que conheço atualmente é você. Posso sonhar com você?”

“Depende do que o senhor vai sonhar.”

“Por que será que sonhei com essas pessoas? Estarei para morrer também?”

“Cruz credo, vire essa boca pra lá.”

“Preciso ir ao banheiro. Você me ajuda?”

“Ajudo.”

Chamava-se Cila. Na verdade, Priscila. Eu nunca concordei com o nome dela abreviado. Muito curto, para uma mulher tão grande. Mas era assim que ela queria. Cila. Então eu a chamava de Cila.

Perdera o marido para o câncer aos trinta anos. E perdera o filho, dois anos depois, para a violência urbana. Com cinquenta anos, me encontrou. Cuidava de mim como se eu fosse o pai dela. Não gostava de sair, não tinha vida social. Vivia para fazer de meus últimos dias uma coisa prazerosa. E estava conseguindo.

“Não gosto do senhor aí dentro com a porta fechada. Pode deixar aberta. Juro que não vou olhar.”

Era a mesma coisa toda vez que eu ia ao banheiro. O medo dela de que eu caísse e morresse. Coitada, não queria perder mais um. Mas e se eu caísse, e morresse, e daí? Minha vida não era tão boa assim para que eu quisesse segurá-la por mais tempo. Em todo o caso, naquela manhã pude terminar ainda vivo o meu xixi, lavar as mãos e abrir a porta para Cila.

“Olha”, mostrei a ela o vaso sanitário. “Tampa levantada.”

“Muito bem.”

Cila então me ajudou a voltar para o quarto. Passavam os dias, e caminhar e ficar de pé eram atividades que exigiam um esforço físico cada vez maior. Quando enfim cheguei até a cama e pude me deitar, estava ofegante.

“O senhor está bem?”

“Cansado.”

Havia preocupação nos olhos dela. Curioso como a idade muda os objetos de nossas aflições. Quando jovem, perturbava-me a possibilidade de não existir nada depois da morte. De que o fim fosse isso mesmo, apenas fim. Hoje me encontro a um passo dele e não estou dando a mínima.

“Talvez eu durma mais um pouco. Pode ir, Cila.”

“Vou ficar aqui.”

Segurei em suas mãos e sorri. Ela parecia emocionada. Talvez achando que eu estivesse me despedindo. Mas só estava agradecendo. Dizendo sem falar que ela era a pessoa mais gentil que eu havia conhecido em toda a minha vida. Então fechei os olhos.

Ao abri-los o apartamento estava vazio e diferente. Mais cinza. Sem cor. E sem nenhum sinal de Cila. Quando saí da cama, não me dei conta de que consegui fazê-lo sem ajuda. Percorri todo o imóvel e vi que estava sozinho em casa. E estava triste. Profundamente triste, com uma tristeza que sabia que não iria passar. Nunca.

Na janela, abri a cortina e vi as pessoas lá fora, na rua. Vivendo. Tive medo de todas elas. Não sabia explicar a razão, mas temê-las me pareceu algo natural e lógico. Por isso não fiz mais perguntas. A partir daquele momento eu me limitaria a olhar, de longe, coberto dessa silenciosa tristeza, o movimento daquelas criaturas distantes que respiravam, transpiravam e às vezes conseguiam sorrir.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Engano


Pobre menina que por causa da asma não respirava direito. O irmão menor achou que a bombinha era um revólver de brinquedo e foi dar tiros no playground. Quando voltou, a coitadinha estava morta.

sábado, 23 de outubro de 2010

Sorteio


 

O blog O ADVERSÁRIO está sorteando um exemplar da coletânea Servidor das Letras.

Se você estiver interessado, basta deixar um comentário nessa postagem ou enviar um email para mauricio_limeira@yahoo.com.br e responder:

1 - Como conheceu o blog?

2 - Do que você mais gosta no blog?

Comentários em outras postagens não serão considerados. O resultado sairá na semana que vem. Boa sorte.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Servidor das Letras

Foi ontem a premiação do 14º Concurso Literário do Servidor Público do Estado do Rio de Janeiro. Como o evento fez parte da comemoração dos 50 anos da Fundação Ceperj, foram proferidos muitos discursos de diretores e ex-diretores da instituição, bem como de secretários do Estado, expedição de diplomas de honra ao mérito e até execução do Hino Nacional Brasileiro.
A premiação mesmo começaria quase duas horas depois do que me avisaram por telefone. Meu "O conto do filho da bela mãe" ficou com o terceiro lugar e, além da premiação em dinheiro (que ainda estou esperando), fui publicado na coletânea Servidor das Letras.
Agora, a parte boa. Fiquem atentos, pois nos próximos dias sortearei exemplares da coletânea pros leitores do blog.

Eu me esticando pra apertar a mão do presidente da Ceperj



terça-feira, 19 de outubro de 2010

Uma noite com Paloma

De uma hora para outra ela havia esquecido tudo. Quem era, como se chamava, onde morava, quantos anos tinha, em que se formara, qual era o seu salário, o que usava por baixo do vestido. E, principalmente, o que viera fazer em meu apartamento. As lágrimas ainda enlameavam o rosto que eu considerava o mais lindo de todos, mas agora não havia mais um motivo aparente para que descessem dos olhos. Ela não sabia por que estava chorando, e olhava para mim como uma criança indefesa e perdida.

“Não se lembra de nada?”, perguntei. “Não se lembra de mim?”

Ela não lembrava. Nada lhe era familiar. Caíra num mundo desconhecido e eu era o anfitrião que a estava recebendo. Um mundo novo, onde o namorado que a abandonara não existia, e eu não era apenas o amigo fiel porém incapaz de despertar qualquer tipo de interesse mais profundo.

E então me dei conta de que não precisava mais ser apenas o amigo.

“Somos namorados”, falei, segurando-lhe as mãos. “Nos amamos. Estamos namorando há anos. Você não pode ter esquecido tudo o que passamos juntos.”

Contei-lhe então todos os momentos inesquecíveis que teríamos vivido. Descrevi nosso primeiro encontro sob a chuva. Nosso primeiro beijo. Os obstáculos que enfrentamos por não contar com a aprovação de seu pai. A vez em que ela quase se afogou na praia de Copacabana e eu salvei-lhe a vida. Ela ouvia e mais assustada ficava por não lembrar. Por não conseguir se ver dentro das lembranças que eu narrava. Cheguei a ficar com pena dela. Mas não voltei atrás.

“Você precisa lembrar”, insisti. “Procure fazer um esforço, meu amor. Olhe para mim. Não reconhece o meu toque, não reconhece o meu cheiro?”

E enquanto perguntava eu ia tocando-a, segurando-lhe as mãos, abraçando-a. Procurei não dar-lhe tempo para raciocínio, falando sem parar, aumentando-lhe a confusão e abrindo caminho para o beijo que não tardou. Que boca maravilhosa. Não sei se alguém  conseguiu alguma vez descrever tão bem a realização de um sonho, e certamente não serei eu a conseguir. Em todo caso, acredite, eu estava no mais perfeito êxtase quando nossos lábios se tocaram e minha língua começou a navegar pela região até então distante e cobiçada de sua boca. Ela se deixou beijar sem, no entanto, contribuir efetivamente. Mas aos poucos foi se entregando, e logo suspirava comigo quando alcancei a pele branca do pescoço e ali fui aumentando a intensidade de meus beijos. Paralelamente apertava-lhe a cintura, os braços, e não tardou para que minha mão lhe alcançasse o seio. Ela estava ofegante. Tentara evitar que a minha falta de pudor lhe descesse a alça do vestido, mas eu não apenas conseguira desnudar-lhe o seio como agora acariciava com a palma da mão o mamilo enrijecido.

Em minutos estávamos em meu quarto. Ela estava nua, embaixo de mim, e enquanto a penetrava eu perguntava-lhe no ouvido se ela se lembrava disso. Ela gritava que sim. Depois, sem parar de entrar e sair de dentro dela, enfiava-lhe o dedo atrás e perguntava, novamente, se ela lembrava. Sim, sim, era a resposta. Mesmo sem nunca ter feito amor comigo, ela lembrava de tudo. Aquilo foi o suficiente para me convencer de que, no fundo, sempre estivemos juntos. Se não nessa, em alguma outra vida paralela onde as coisas eram como deveriam realmente ser. Quando finalmente terminamos, ela virou-se para o lado, exausta, e adormeceu. Eu fiquei acordado, enternecido, admirando-lhe o sono. Era o mais feliz dos homens.

Seria, no entanto, retirado de meu estado de felicidade pelo toque do telefone. A fim de não fazer barulho, fui atender na sala. Era Tiago, o sujeito que, além de meu amigo, também era o ex-namorado da mulher que dormia em minha cama. Parecia arrasado.

“Oi, Tiago.”

“Juliano, você sabe para onde a Paloma foi?”

Sabia, sim. Foi para as nuvens. Eu a levei.

“Não, Tiago. Aconteceu alguma coisa?”

“A gente teve uma briga. Eu terminei com ela. Ela ficou muito abalada, tô preocupado, cara. Ela pode fazer alguma besteira. Ela não te procurou?”

“Não. Mas pode deixar que eu te aviso. Um abraço, cara.”

“Valeu, amigo.”

Agora voltamos à nossa programação normal, pensei, enquanto retornava ao quarto.

Paloma continuava estirada em minha cama, bela adormecida mergulhada nua em seus sonhos. Sem que ela despertasse tomei-lhe um dos pés e beijei-o delicadamente várias vezes, em toda a sua extensão. Beijava o dorso, os dedos, a sola, e nessa situação de abuso terminei por ver aceso novamente o desejo. Segurando pelo calcanhar o tão delicado pé de minha amada, comecei a me masturbar e não parei antes de ejacular fartamente em seus dedos. Ela continuava linda, fada, santa, mesmo com a profanação de sua pele por meu sêmen. Eu a olhava e esperava que, ao acordar, Paloma permanecesse amnésica. Mas estava preparado para o caso de isso não acontecer. Meu plano B seria dizer, simplesmente, com a cara mais assustada, que ela viera até meu apartamento após terminar com Tiago e, visivelmente bêbada e chorando, me seduzira e eu não resisti. Aconteceu. Não foi antecipado e nem era culpa de ninguém. Ela talvez ficasse chocada, mas entenderia. Não havia o que fazer. O ser humano era dado a comportamentos cuja explicação muitas vezes se perdia no meio das luzes e das trevas da alma. Por que então pedir razões aos gestos da alma, se a própria alma as dispensava?

Naquele instante o telefone tocou outra vez, e voltei para a sala para atendê-lo. Era o Tiago de novo.

“Cara, tem certeza de que ela não te procurou? Ela não te ligou?”

“Não.”

“Eu tô ligando pra casa dela e ninguém atende. Tô muito preocupado. Acho que aconteceu alguma coisa.”

“Por que vocês brigaram, afinal?”

“Ela tem um problema, mas não importa. A gente precisa encontrar a Paloma.”

A gente?

“Que problema ela tem?”

“Deixa pra lá. A gente precisa encontrar.”

“Que problema ela tem?”

“Ela tem umas perturbações. Faz umas coisas estranhas. Eu falei pra ela se tratar. Pra procurar um médico. Um pai de santo. Sei lá.”

“Peraí. Me explica isso direito. O que ela faz? Pra que ela precisa de pai de santo?”

“Nada. Esquece. Se ela te procurar, me avisa.”

“Diz logo o que a Paloma tem, porra.”

Eu já estava impaciente com Tiago, quando então ouvi um barulho vindo do quarto.

“Tiago, preciso desligar. Me liga daqui a cinco minutos. Liga pro meu celular.”

“Tá legal.”

Quando estava voltando para o quarto, tive a sensação de que iria me arrepender de ter mentido para Paloma, feito amor com ela e ejaculado em seu pé. E de fato o arrependimento começou ao ver a cama vazia. Paloma não estava mais lá. De alguma forma conseguira sair do quarto, passar por mim enquanto eu falava ao telefone com seu ex-namorado e sair do apartamento, deixando a porta aberta e um absurdo e escandaloso rastro de fezes pelo chão. O rastro seguia pela escada, por onde ela certamente havia descido, nua, sabe-se lá para onde e para quê. Olhando os degraus que se estendiam para o andar inferior, pensei em deixar que ela se virasse. Em não me envolver. Em voltar para casa e limpar o chão. Mas acabei descendo também, gritando o nome dela enquanto ouvia, bem longe, os pés descalços pisando ligeiros o mármore dos degraus. Aquilo não acabaria bem. Uma mulher correndo nua e toda cagada no meio da noite era caso de polícia. Eu deveria saber que ninguém fica muito tempo no paraíso com a mulher amada. Que lá embaixo as chamas do inferno me aguardavam para encerrar da pior maneira possível os momentos mais felizes de minha vida. Eu deveria saber.

Ao chegar na portaria estava ofegante. Paloma estivera por ali e ganhara a rua, diziam as pegadas sujas de merda que ela deixara. Tomei o mesmo caminho e, na bifurcação entre um beco escuro e a avenida, imaginei que ela tivesse entrado no beco escuro. Era o que eu faria, se estivesse correndo pelado pela rua. E foi a alternativa correta. Paloma estava lá, de pé, na sombra. Imóvel e de frente para um muro, como que aguardando alguma coisa sair dali. Fui me aproximando lentamente e repetindo seu nome com suavidade para não assustá-la. Ela não se mexeu nem falou, mas deixou-me chegar perto. Estava fedendo, mas mesmo assim eu a abracei.

“Está tudo bem, Paloma. Estou aqui com você.”

Mas não estava nada bem. Quando percebi no muro as sombras projetadas de um ponto atrás de mim, me virei rapidamente para confirmar que não estávamos sozinhos. Havia dois homens na entrada do beco, sujos, mal vestidos e possivelmente criminosos. Estavam parados, mas logo caminhavam em nossa direção.

“Não disse que tinha uma mulher pelada correndo pela rua”, falou um deles. “Olha ela aí.”

“Peladinha”, concordou o outro.

Tentei argumentar. Disse aos dois que minha namorada estava doente, e que eu a estava levando para casa. Tentei apelar para a compaixão deles. Mas não adiantou. Levei uma surra dos dois e tive de assistir caído no chão enquanto Paloma era violentada. Violentada, sim. Quem visse a cena poderia até pensar que ela estava gostando, mas aquela que abria as pernas e gritava para que enfiassem tudo não era ela. Não a minha Paloma. Não era, eu sabia, a mulher da minha vida abrindo as pernas para os criminosos sujos. Não o meu amor. Quando o celular tocou de novo àquela hora, tive dificuldade em pegá-lo no bolso e atender. Mas não foi difícil imaginar quem estava do outro lado da linha.

“Oi, Tiago.”

“E aí, cara? Alguma notícia da Paloma? Ela te procurou?”

“Procurou.”

“Ela te procurou? E como ela está?”

Naquele instante, pude perceber que mais homens imundos e sem ocupação apareciam no beco. Todos rodeavam Paloma, como que esperando a vez.

“Mais ou menos”, respondi.

“Cara, eu precisava conversar com ela. Precisava dizer que apesar de tudo eu gosto dela. Mas que, com esse problema que ela tem, não dá. Não dá.”

“Ela não vai te ouvir agora.”

“Fala pra ela, cara. Você é meu amigo. Diz pra ela.”

“Vou tentar. Tchau.”

Não sei até que horas da madrugada tive de ficar olhando o aterrador e repetitivo espetáculo dos homens cercando Paloma, abaixando as calças e entrando em suas intimidades. Houve um momento em que, vencido pelo cansaço, adormeci. Meus olhos só iriam se abrir com o céu já claro, e pude então ver que os mendigos estupradores haviam ido embora e deixado minha mulher em paz. Paloma estava deitada na sarjeta, imunda, violada e inconsciente, e com o corpo cheio de dores eu fui até ela. Coloquei-a em pé. Ajudei-a a caminhar. No caminho para minha casa, passamos por uma igreja e ela pediu para ficar lá dentro. E foi nesse momento que reconheci, emocionado, a Paloma que eu amava. Era o meu amor falando de novo, o meu amor havia voltado para mim. Tratei de atender o seu pedido e, influenciado pela religiosidade do lugar, comovido por reencontrar a mulher da minha vida, pedi Paloma em casamento. Confessei que sempre a amara. Admiti o quanto sofria vendo-a nos braços de Tiago, o quanto sonhava com o dia inalcançável em que estaríamos juntos, o quanto queria sorrir quando ela sorria e o quanto queria chorar quando ela chorava. Confessei que precisava dela, como precisava da esperança para acordar todas as manhãs e acreditar que seria capaz de sobreviver a mais um dia sem ela. Precisava dela como precisava de fé, como precisava de alguma coisa que me desse sentido nessa vida tão infeliz. Enquanto falava as lágrimas desciam-me pelos olhos e eu segurava as mãos de Paloma, implorando que me amasse como esposa e prometendo fazê-la a mais feliz de todas as mulheres.

Paloma, no entanto, recusaria o meu pedido e tiraria, de dentro das minhas, as suas mãos. Antes que eu pudesse argumentar, insistir para que ela pensasse no assunto, porém, um padre veio ter conosco e, cobrindo-lhe a nudez, levou Paloma para dentro. Sozinho na igreja, atendi o celular que tocou de novo. E, de novo, era o Tiago.

“Ei, cara. Você falou com a Paloma? Deu o meu recado?”

Nesse momento me levantei de onde estava sentado e fui até a pia batismal. Largando lá dentro o celular, deixei que a voz de Tiago se afogasse na água benta e fui para casa chorar minhas mágoas.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Lembrete

Ah, é. Esqueci de te avisar, amor. Além de ter um metro e noventa e oito de altura, ser moreno de olhos verdes, másculo, viril e bem dotado, além de saber cozinhar, de gostar de comédia romântica e de poesia, de ser paciente e de não me importar em discutir a relação nem em acompanhar você no shopping, além de não olhar para as suas amigas e de ser carinhoso, atencioso e de gostar de criança, e de ser diretor de uma agência de publicidade e herdeiro de um magnata, eu queria dizer que sou um psicopata canibal. Mas é só por isso que você está amarrada e amordaçada e eu estou cortando a sua perna com um serrote, amor.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Volta

Parou a chuva. Saí com meus pensamentos turvos para uma rua, para uma noite, que a todo instante me recomendava Volta. Volta para casa. Mas eu saí surdo, e ao olhar para trás não vi minha casa, e também não vi minha casa quando me pus a vasculhar pelos becos da memória. Eu não tinha casa, eu não morava, eu não sabia o que “lar” queria dizer. Minha vida era um eterno tropeçar, cair, levantar e acumular hematomas e pequenas e grandes dores ao redor dos ossos. Só isso. Eu sabia e era impaciente e avançava. Para o nada, para o ninguém, para o nunca. Compreende o que digo? Ou acha que não passa de conversa de bêbado, drogado, infeliz e mal amado, procurando explicação para esse mal estar que já necrosou todo o peito e agora se espalha para o resto do corpo. Deixei a cidade. Me escondi na floresta, passei fome, adoeci e enquanto sentia o musgo se formar por cima da pele encontrei a lua, parada no céu ainda à espera de um dia ser habitada pelo homem. E olhando a lua suspirei, por saber que não estaria aqui quando esse dia chegasse.

sábado, 9 de outubro de 2010

Chato até o fim

Seguia pela rua escura o homem muito chato quando virou a esquina da casa assombrada.

Na curiosidade, o homem muito chato entrou. Nunca mais saiu.

Hoje, fica ligando a cobrar para a esposa. Do além.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O professor de literatura

 “Para escrever uma história de horror”, o orientador explicava à aluna, “você deve em primeiro lugar conhecer o medo. Sentir o medo. Saber onde ele se encontra aí dentro, para então saber onde e como localizá-lo. E então poder transmiti-lo ao leitor.”

Enquanto explicava, o orientador ia olhando fixamente nos olhos da aluna. De modo tranquilo e insistente. Sem qualquer sinal de constrangimento. Ao pronunciar “aí dentro”, porém, seus olhos desceram até o decote e por ali ficaram. Ela percebeu, e fingiu que arfava. Com isso, mais estufou os seios aos olhos dele. Ele também percebeu e, sem qualquer demonstração de surpresa, continuou olhando.  Depois voltou-se novamente para ela.

“A maneira como você transmite a emoção é fundamental”, ele disse. “Não jogue tudo na cara do leitor de uma vez. Mostre um pouco aqui. Esconda ali. Sutilmente. Envolva-o primeiro. Depois é que você vai se deixando revelar.”

Como você está fazendo comigo, pensou a aluna. Exatamente assim.

O orientador era feio. Velho. Tinha idade para ser pai dela. Mas a aluna ficava nervosa sempre que estava com ele como estavam agora. Próximos demais. E ele fazia questão de ficar ainda mais próximo. Exalando perfume caro e hálito de cigarro. Usando a voz grave e rouca para jogar charme.

“Se você souber usar os artifícios que a literatura lhe dá, terá o leitor na sua mão. Poderá fazer com ele o que quiser. Ir aonde a sua imaginação desejar, que ele irá junto.”

Tinha fama de pegador. A aluna já ouvira os boatos sobre ele na faculdade. E agora, ambos sabiam, ela estava prestes a ser a próxima vítima.

“Se você puder desviar a atenção do leitor, faça. Deixe-o pensar que está lendo outra coisa. Não uma história de terror. Desenvolva os personagens. Conte um episódio engraçado, ou triste, ou erótico, mas não deixe de ser convincente. O espectador tem que gostar, ou do personagem ou da trama, e não perceber que você está apenas preparando o terreno para o bote.”

Nesse instante ele botou a mão sobre a perna dela.

“A melhor história é aquela que não dá aquilo que o leitor quer. Ou dá, mas não da forma que ele espera. Se o leitor pega uma história de terror para ler, ele vai estar esperando o terror. Medo. Tensão. Susto. Só que você dá outra coisa. Você faz ele baixar a guarda. E então você o aterroriza. Parece fácil. Mas não tem nada de fácil nisso. É preciso muita capacidade de manipulação. A maioria não tem.”

Ele agora acariciava abertamente a sua coxa, por cima do vestido. Com certeza havia percebido que ela tremia.

“Tenho uns livros interessantes em casa que você ia gostar de ler. Você vai entender bem como o autor manipula o leitor e o faz baixar a guarda para o que está por vir. Venha me visitar hoje. Você vem?”

“Vou.”

Às oito horas da noite ela estava saindo da aula de Literatura Comparada rumo à residência do orientador. Mal conseguira prestar atenção à aula. Ansiosa. Ao atravessar uma rua, porém, passou sem saber por um demônio perdido nas ruas. Uma criatura dessas que ninguém vê, mas que está sempre lá. Que, quando cisma com alguém, torna-se encosto, gruda-lhe nas costas e se delicia com o estado de nervos em que deixa a vítima. Um ser incômodo. Pois foi por uma criatura dessas que a aluna teve a infelicidade de passar.

Sentindo o cheiro de fêmea que emanava do meio das pernas da aluna, o demônio resolveu seguir-lhe os passos. Conhecia as mulheres. Sabia que era naquele estado, quando estavam inquietas e cheiravam daquele jeito, que ficavam mais frágeis, mais suscetíveis aos seus avanços. Ficavam atentadas.

E também ele ficava inquieto com o cheiro. Afoito como um cachorro, o demônio ia circulando em volta da aluna e cheirando-lhe as partes, quase metendo-lhe as narinas por debaixo do vestido. Se não estivesse tão excitada com o encontro com o orientador, ela teria percebido a presença. Teria sentido o calor da respiração do estranho aquecendo-lhe dentro das vestes. Teria medo, então, e fugiria. Mas nessas horas a capacidade de observação e raciocínio diminui, a sensibilidade chega às raias da dor e da vertigem, e mesmo o inimigo declarado torna-se irresistível objeto de desejo. Assim estava a aluna quando chegou ao edifício do orientador.

Na subida do elevador o demônio ia deixando-a tonta enquanto chupava-lhe o suco nas roupas íntimas. Foi cambaleando que ela chegou ao 13º andar e tocou a campainha.

Quando o orientador abriu a porta, porém, o demônio não gostou. Ao aspirar o ar que vinha do interior do apartamento, percebeu que tinha de ir embora. Que já havia um dono para o local, e que esse dono era muito maior e pior do que ele. Resmungando, o demoniozinho safado sequer esperou o elevador. Um último olhar para a aluna, e então desceu correndo pelas escadas e nunca mais chegou perto daquele edifício.

“Entra”, o orientador convidou.

“Oi”, a aluna estava nervosa quando entrou. Segurava uma das mãos na outra, e não encarava o orientador que afastara-se para ela entrar. Quando tentava sorrir, os lábios tremiam. Ela toda tremia.

“Quer beber alguma coisa?”

Recusou, encabulada, ainda que a boca estivesse seca. Lutava com todas as forças para parecer natural e espontânea, e tudo o que conseguia era agir como uma adolescente tímida. Na face, as bochechas queimando indicavam que ruborizava. Precisava falar. Ou ele acabaria expulsando-a do apartamento. Caminhou até a estante que ocupava toda uma parede da sala onde estavam.

“São seus todos esses livros?”

Não, idiota. São todos roubados. Antes ficasse calada, pensou. O orientador ia acabar perdendo o interesse que manifestara nela. Na certa ia mostrar o tal livro que prometera na faculdade, por pura educação, depois inventaria que precisava trabalhar e lhe mostraria a porta de saída. A noite seria um fiasco. Melhor ir embora logo e acabar de uma vez com aquela humilhação.

“Tenho mais no outro quarto, que uso como escritório”, ele falou, pacientemente. “O de que lhe falei está aqui.”

Segurando-lhe a cintura ele a trouxe até a ponta da estante. Posicionou-se às suas costas, enquanto ela olhava o livro sem conseguir sequer enxergar o título. Foi folheando o volume rapidamente até que as mãos dele chegaram a seu corpo. Uma na cintura, a outra no ombro. Apertando levemente, e puxando-a para trás. Trazendo-a ao encontro dele. Quando encostou de vez, a aluna duvidou que fosse conseguir ficar de pé. Ele já estava excitado. Ela sentiu. Movendo-se sempre suavemente, o orientador afastou-lhe os cabelos do pescoço e começou a beijar-lhe bem ali. Ela pensou que fosse desfalecer nos braços dele, e deixou a cabeça cair para trás, encontrando o ombro que a esperava. Sentiu o hálito de cigarro misturado com bebida. A língua serpenteando-lhe pelo pescoço. E logo veio a mão direita dele, sem cerimônia, apertar-lhe o seio. Nesse instante ela saiu do silêncio, e deixou escapar um gemido curto, de susto.

Ele então puxou-lhe o rosto e a beijou na boca. Demoradamente, em pé, junto à estante. Ela ainda segurava o livro em uma das mãos. Estavam agora de frente um para o outro, e a mão inquieta dele descia-lhe pelas costas e afastava o vestido. Ia apertando o que encontrava, procurando com o dedo por baixo dos tecidos, até encontrar o que queria. Já não havia suavidade. Ele enfiava o dedo nela com força, respirava fundo, e enfim começou a sussurrar em seu ouvido.

“Bruxa. Você é uma bruxa. Confesse.”

Ela não entendeu, mas estava tão excitada que faria o que ele mandasse. Mal conseguia falar, a excitação escorria pelas pernas e ela limitava-se a gemer concordando com tudo. E a mover os quadris junto com o dedo dele. Quando ele então tirou o dedo e a fez ajoelhar-se, ela obedeceu também. Viu quando ele desafivelou o cinto e abriu a calça. Viu o que havia ali dentro. Fez o que ele queria.

“Bruxa. Rameira. Vadia.”

Ele segurava-lhe pela cabeça. Forçava a entrada em sua boca. Obrigava-a a receber todo ele. Antes de terminar ordenou que ficasse de pé, e levou-a para o quarto. Atirou-a na cama, caindo já sem roupas por cima dela. A penetração foi rápida, barulhenta e dolorosa. O tempo todo ele a xingava, ofendia, em nada lembrando a elegância e a mansidão de antes.

Deu no ombro a primeira mordida. Ela reclamou. Pele muito branca, deixou marca. Ele não ouvia. Rosnava. Ela já estava vendo coisas, podia jurar que havia mais alguém na cama com eles. Não teve, no entanto, tempo para certificar-se. Bruscamente ele a virou de bruços e a penetrou atrás. Ela gritou. Ele puxou-lhe o cabelo, mordeu de novo, e de novo, deixou mais marcas, estava possesso.

“Vai arder no fogo do inferno.”

Quando ele começou a gozar, gritou como se estivesse a morrer. Ela gritou também. O orientador caiu por cima da aluna, e ela então emitiu um suspiro.

“Não acabou ainda. Vagabunda. Estamos só começando.”

Havia uma corda embaixo da cama. Bastou esticar o braço para pegá-la. Ela tentou reclamar, mas viu que o membro por que havia sido penetrada continuava duro, e a vontade de satisfazê-lo falou mais alto. Acabou deixando-se amarrar, as duas mãos e os dois pés, às pontas da cama. Quando achou que seria novamente penetrada, no entanto, o que lhe veio foi um violento tapa no rosto. Depois outro. Montado em cima dela, o orientador gargalhava e falava coisas que ela já não entendia. Falava em punição e castigo. Xingava-a de todos os nomes, como se a odiasse. A aluna chorava, pedia para parar, que a desamarrasse. Acabou sendo amordaçada. Depois de apanhar mais e mais, o orientador enfiou o rosto alucinado num dos seios e mordeu. Com toda força. A dor e o horror quase a fizeram desmaiar, principalmente quando ele ergueu a cabeça à sua frente com a boca cheia de sangue e cuspiu o mamilo que arrancara. A aluna esperneou e gritou um grito abafado. Naquele instante teve certeza de que iria morrer. Ele não permitiria que saísse com vida daquele apartamento. Gritou com toda força, lutando contra as cordas, até tombar exausta.

“Fica acordada”, ele disse, limpando com as costas da mão o sangue na boca. “Tem mais pra você.”

Levantando-se de cima dela, o orientador saiu do quarto. No mais profundo e completo pânico, a aluna procurou algo que a libertasse das cordas, tentou quebrar a cama, tentou fazer barulho, tudo em vão. Logo ele estava de volta. Trazia algo na mão que ela, a vista embaçada de suor e choro, só foi reconhecer quando ele chegou mais perto e destampou. Era álcool. Gargalhando, ele virou o frasco sobre a vagina dela e derramou ali todo o conteúdo. Ela sentiu arder tanto a pele já irritada que mentalmente pediu que morresse. Pediu que tudo acabasse ali mesmo. De repente imagens de seus pais, de seus amigos e de todos aqueles que conhecia explodiram na sua mente, e ela soube que nunca mais veria nenhum deles. Não teria, porém, mais tempo para pensar. O orientador trazia outra coisa na mão, que estava agora abrindo. Era uma caixa de fósforos. Ele estava eufórico quando riscou o primeiro palito e jogou-o, aceso, sobre o álcool derramado.

Estava em chamas. A vagina dela estava em chamas. A aluna não conseguiu olhar, estava enlouquecendo de dor. Rasgando-se de dor. Diante da cama o orientador gritava algum tipo de oração diabólica, e a visão dele de braços erguidos, as chamas e o enorme vulto a tudo acompanhando foi a última visão que a aluna teria. Vitimada por uma parada cardíaca, ela enfim parou de debater-se e morreu. O orientador, em êxtase, avançaria então para cima dela com uma enorme faca e retirando, desajeitadamente, pedaços de sua carne, terminaria por devorá-la.

*

Passados oito meses do desaparecimento da aluna, seus pais não perderam a esperança de encontrá-la e insistem em sua procura. Débora Gonçalves Lessa tinha 23 anos quando foi vista pela última vez saindo da faculdade. Morava com os pais e o irmão num apartamento no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Estudava literatura e pretendia ser professora quando se formasse. Era uma jovem tímida, carinhosa e querida. Não era dada a excessos, não fumava, bebia pouco. Na faculdade os colegas fizeram-lhe uma homenagem. Todos os professores participaram.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Concurso Literário

Todo ano a Fundação Ceperj promove, aqui no Rio, o seu Concurso Literário para o Servidor Público do Estado. Neste ano foram 647 trabalhos (340 poesias e 307 contos) inscritos, e os vencedores, além da premiação em dinheiro, farão parte de uma coletânea publicada pela fundação.
No início dessa semana recebi um telefonema deles, me parabenizando por minha obra "O conto do filho da bela mãe" ter tirado o terceiro lugar. Se não for trote, dia 21 é a premiação. Vamos aguardar.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Veredas



 

Veredas é uma interessante revista eletrônica editada por Ana Mello e Marcelo Spalding. Dedica-se a publicar minicontos e micronarrativas como este "Fatal", de Maria Regina Caetano Soares, que reproduzo abaixo.

Era para ser um final de tarde como outro qualquer na vida de Dimitrius Alexandre. Caminhou rápido sobre a ponte recém inaugurada na cidade em que nasceu, dirigiu-se à parte mais alta e sumiu.
Bonito e eternamente vaidoso, vestia uma roupa linda de morrer.



Em sua edição de outubro, a Veredas publicou meu miniconto "Reconciliação" (já postado aqui).

Quem quiser conferir, o endereço da Veredas é http://www.veredas.art.br/. Boa leitura.

domingo, 3 de outubro de 2010

TerrorZine



TerrorZine é um fanzine eletrônico organizado por Ademir Pascale e Elenir Alves, voltado à publicação de minicontos de horror, a entrevistas com autores nacionais e a dicas literárias dos gêneros horror e fantástico. A edição atual, de nº 21, traz minicontos de 19 autores, e um desses sou eu, com o miniconto "Identidade", já postado nesse blog.

Quem desejar conferir, a TerrorZine é distribuída gratuitamente via download, no endereço www.divulgalivros.org/terrorzine21.pdf.

sábado, 2 de outubro de 2010

Eleições (2)

Dizem que, na eleição para prefeito em 2008, um homem teria entrado numa das salas de uma escola na Zona Sul do Rio de Janeiro para votar. Após passar pelas formalidades necessárias, dirigiu-se à urna e lá ficou.

Quando os mesários enfim perceberam que ele se demorava mais do que o normal, se deram conta também de que o homem em pé diante da urna estava falando sozinho. Sussurrava frases incompreensíveis num idioma que parecia latim, não parando quando lhe avisaram que deveria sair.

Mas a atenção das pessoas na sala seria desviada do homem quando uma mulher de cinquenta e cinco anos, que esperava na fila a sua vez de ir para a urna, começou a chorar sem razão e a dizer que “a morte está aqui, a morte está aqui. Alguém me ajude.”

Reunidos todos ao redor da mulher para acalmá-la, ninguém percebeu a saída do homem junto à urna, que deixou a sala sem ser visto. Quando o próximo eleitor se dirigiu para votar, soltou um grito de susto. No monitor da máquina, a imagem da cédula estava congelada no número 666, independente de qualquer dígito que se utilizasse.

Chamou-se o técnico, mas nem ele resolveu o problema. A urna teve de ser desligada, e a seção eleitoral, fechada.

Mas o dia não terminaria aí. Um dos mesários, rapaz de vinte e seis anos e funcionário de um banco, tomado de um inesperado cansaço, pediu para sentar-se. Segundo ele, de repente faltara-lhe fôlego e precisava se apoiar em algo. Sentaram-no num sofá na diretoria da escola, e lá ele adormeceu.

Apenas no fim do dia, encerrada a votação, lembraram dele. Foram até a diretoria e tentaram acordá-lo. Em vão. O mesário havia morrido.

Houve quem culpasse o homem estranho que falava em latim. Houve quem culpasse a mulher que chorava. Houve até quem culpasse a urna, que estaria assombrada. O fato é que justamente nessa escola é que eu vou votar amanhã, e agora não consigo dormir direito pensando nisso. Não basta o terror de não ter em quem votar, ainda precisamos driblar a morte para cumprir o nosso dever de cidadão.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Eleições (1)

 Havia um senador que, diante da ameaça de não se reeleger, não titubeou. Reuniu os ingredientes necessários a um ritual e, à meia noite, invocou o diabo.

Não sabia se daria certo. Possuía há mais de dez anos o ritual numa folha de papel dada por um ex-padre já falecido, e nunca tivera necessidade de levá-lo a termo. Agora que a necessidade aparecia, imaginou se não estava diante de mais uma crendice, como as tantas que esse miserável povo brasileiro inventa para maquiar a sua ignorância, a sua selvageria, a sua nojeira.

Quando a sala em que estava começou a feder a enxofre, ele teve certeza de que daria certo. Do lugar marcado com sangue no chão, uma chama começou a subir e a tomar forma de homem.

“Boa noite, senador”, disse, afinal, o diabo materializado.

“Preciso de sua ajuda”, gaguejou o senador da República. “Esse ano posso perder meu mandato. Dois senadores serão eleitos para o Congresso Nacional, e as pesquisas dizem que estou em terceiro lugar, caindo para quarto. Eu não posso perder essa vaga. Não posso. A eleição é daqui a três dias. Estou desesperado. Não sei como reverter esse quadro.”

“O senhor quer que eu seja seu cabo eleitoral?”

Para alguém que vivia no inferno, o diabo tinha um senso de humor impecável.

“Preciso”, pediu o senador, “que você elimine meus concorrentes. Há uma mulher. E um viado. Um sodomita. Que estão na minha frente. Se eles morressem, eu seria imbatível. Você pode fazer isso.”

“Posso. Claro. Mas há um preço.”

“Eu sei. A minha alma. É sua.”

“Hoje não. Hoje quero fazer uma brincadeira diferente. Não estou interessado em sua alma.”

“Não?”, o senador sorriu, aliviado. Ia ganhar a eleição sem precisar vender a alma ao diabo. Seria mais fácil do que imaginava. “E o que você quer de mim?”

“A sua neta.”

“Minha neta?”

“Sua neta.”

“Mas ela é uma criança. Tem só quinze anos.”

“E é virgem. Eu sei.”

“Você não prefere a minha alma?”

“Claro que não.”

“Eu posso conseguir outra menina para você. Da mesma idade. Virgem igual. Possuo contatos.”

“Não tenho o dia todo, senador. É pegar ou largar.”

“Eu pego. Eu pego. Pode levar a minha neta. Quer que eu vá buscá-la?”

“Não precisa. Eu sei onde ela dorme.”




quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Orégano

"Passe o orégano, por favor."

Seria mais fácil matar você. Tão mais fácil do que aturar-lhe diariamente as acusações, as cobranças, as agressões. Tão mais simples do que fingir ser amor, e não rotina, amor, e não carência, amor, e não dinheiro, a cola que ainda nos mantém unidos depois de todos esses anos. Tão mais honesto do que sorrir diante das luzes e das fotos e da inveja dos que sonham com um convívio tão longo e harmonioso quanto o nosso. Tão menos doloroso do que levar essa sobrevida de quem foi condenado a apodrecer segurando a mão de alguém que se odeia. Tão mais belo, mais intenso, mais verdadeiro, seria matar você. E no entanto...

"Pois não, meu amor. Aqui está."

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

"O Adversário" na Darkness Rising

Chegamos por volta de 14:30, eu, Alessandra e Cláudio, no Clube do América, onde seria realizado o evento. A mesa redonda da qual participaria começou com atraso, e vários autores presentes, eu inclusive, não tiveram tempo para falar. Por sorte, me convidaram depois para participar de outra mesa redonda, sobre o mercado para a literatura fantástica no Brasil. Dessa vez deu pra falar, mesmo sem entender nada do assunto.

O evento foi agradável, os organizadores simpáticos, e consegui trocar algumas figurinhas com o escritor Gerson Couto, autor de Hemisfério-Dorso (blog aqui). Não consegui, no entanto, me livrar da sensação horrível de que uma presença gelada, escura e triste circulava pelos mesmos locais que eu, me acompanhando. Perguntei disfarçadamente a Alessandra e Cláudio, mas eles pareceram nada sentir.

As fotos abaixo são cortesia de Cláudio Beserra.

A primeira mesa


Gerson Couto, eu e Andrés Carreiro


A segunda mesa


Discorrendo sobre o mercado da literatura fantástica no Brasil


O salão do Café Literário


O estande


Um autógrafo


Outro autógrafo


Com Alessandra


Com Cláudio





sábado, 25 de setembro de 2010

Gui

"Acho que estou vendo coisas", ela disse.

"Vendo o quê?", ele continuou olhando a TV.

"Um anãozinho. Tipo um duendezinho. Estava ali, perto da estante. Quando me viu, correu lá pra dentro."

"Ok."

Ela sentou junto dele e aconchegou-se em seus ombros. Na TV, o apresentador perguntou à criança se ela estava pronta para comer um prato de vermes em troca de um ingresso para o show de uma cantora baiana, com direito a visita ao camarim.

"Claro", respondeu a criança.

"Então pode cair de boca", disse o apresentador. "E bom apetite."

Enquanto a criança comia vermes, o anãozinho passou de novo pela sala.

"Você viu?", ela perguntou.

"Vi."

Ele se levantou e foi atrás do anãozinho. Ela se levantou também.

"Fica aí", ele mandou.

"Toma cuidado."

Ela ficou olhando ele seguir pelo pequeno corredor depois da sala onde estavam. Entrou no primeiro quarto, que eles usavam como escritório.

"Gui?", ela perguntou. "Está tudo bem?"

Ele não respondeu.

"Gui?"

"Está."

Na TV, a criança terminara o prato de vermes e estava pedindo mais.

"Gui?"

Dava para ouvir algum barulho vindo do escritório. Gui estava revirando tudo, procurando o anãozinho.

"Gui? Gui?"

Era costume dele não responder. Dessa vez, porém, ela ficou preocupada. Os ruídos no escritório haviam cessado, e ele não respondia.

"Gui, responde. Por favor."

Quando Gui voltou para a sala, estava diferente. Não olhava para ela. Olhava para o chão.

"Gui, você encontrou o anãozinho?"

"Não."

"Está tudo bem?"

"Não."

Gui caminhou até a janela e a abriu. Passou a perna esquerda para o lado de fora do prédio. Estavam no nono andar.

"Gui, o que você está fazendo? Gui? GUI!"

Gui passou o resto do corpo e se jogou. Ela pôs-se a gritar, chorar, entrou em crise. Na TV, a criança não parava de comer os vermes que, agora, saíam-lhe também pelas narinas e pelos olhos.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Mãe

“Fique comigo.”

Foi a única coisa que a mãe dele pediu. A velha estava no leito de morte, sozinha, com medo. Tudo o que pedia era para não morrer abandonada.

“Fique comigo, por favor, fique comigo.”

Ele estava no bar quando ela morreu. Bebendo e reclamando. Contava, para quem quisesse ouvir, o quanto já havia gasto com internação, remédio, médico. Que despesa, agora, só com a funerária. Foi nesse ponto da história que o celular tocou, e ele recebeu a notícia do óbito. Como que transformado em outra pessoa ele se calou, saiu do bar e foi procurar um canto para ficar chorando. Os olhos ainda inchados quando chegou ao hospital.

Durante o enterro precisaram ampará-lo. Só depois de consumada a perda é que foi dar-se conta do quanto gostava da mãe, e chorou sem parar quando o caixão foi enfiado na gaveta e lacrado com cimento. Em casa a vizinha, amiga e da mesma idade da mãe, veio fazer-lhe companhia. Ele já não chorava, mas também não comia. Recusava tudo e não saía da cama, corroído pelo remorso.

Às dez da noite a vizinha não quis ficar mais lá. De repente, ficar na casa da defunta deu-lhe uns arrepios, e ela ficou com medo. Pediu desculpas, disse a ele que tinha afazeres em casa, convidou-o a visitá-la. Podia até passar a noite em sua casa. Ele, no entanto, não quis sair da cama.

Passou um tempo e ele ouviu um ruído no quarto. Quando abriu os olhos precisou acostumar-se com a escuridão, até perceber um vulto no meio das sombras.

“Mãe?”, ele perguntou. “Mãe, é você?”

Tentou levantar, mas o corpo estava como preso, colado à cama. Forçou a vista. Parecia ter mesmo alguém no quarto.

“Mãe?”

Na manhã seguinte havia perdido a sensibilidade nos pés. Não os sentia mais. Pisar o chão se tornara o mesmo que pisar o nada, e ele se desequilibrava ao tentar andar. Precisou da ajuda da vizinha para ir ao médico. Fez exames. Exames que não acusaram nada. Precisou da vizinha de novo, ao voltar para casa.

À noite, o vulto nas sombras permanecia no mesmo canto escuro do quarto. Não respondia a seus pedidos de perdão. Nem se comovia com seu choro assustado. Ele passara a pedir à vizinha que deixasse a luz acesa ao sair, mas bastava ela fechar a porta que a luz do quarto se apagava sozinha. Ele implorava para que a mãe morta o deixasse em paz.

Passados dois meses, ele não andava mais. Para tudo necessitava cadeira de rodas. A perda da sensibilidade evoluíra até o alto das pernas, transformando-o num aleijado. A vizinha cuidava dele durante o dia, e era a única pessoa que acreditava quando ele culpava a mãe por não poder mais andar.

“Durma aqui”, ele pediu à vizinha. “Só hoje.”

Ele sabia que logo a mãe estaria no quarto. Esperava que, com a vizinha ali, ela não viesse.

“Fique. Por favor.”

A vizinha estava com o coração apertado. Gostava dele como a um filho, mas não ficou. E, naquela noite, de novo, ao bater a porta, o vulto no escuro apareceu.

“Por que a senhora faz isso?”, ele estendia as mãos à mãe e chorava. “Por que me deixou assim?”

Como sempre, não houve resposta. Mas dessa vez seria diferente. Sem nada dizer, o vulto passou diante da cama onde ele estava e dirigiu-se até a porta. Quando saiu do quarto, deixando no ar um cheiro de folhagem seca, ele entendeu apavorado que o vulto havia ido atrás da vizinha, e então gritou. Mas não conseguiu sair da cama.

A vizinha nunca mais retornou. O vulto, no entanto, toda noite vem vê-lo. Sem comer há dias, ele emagreceu muito, e passa todo tempo com os olhos voltados para um ponto qualquer do quarto. Só lembraram dele quando o mau cheiro já ultrapassava as paredes do apartamento. Quando enfim tamparam com cimento a gaveta mortuária, ninguém reparou que o caixão pesava como se carregasse dois corpos no lugar de um.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Darkness Rising

No próximo domingo, dia 26, o Clube do América vai sediar o primeiro Darkness Rising do Rio de Janeiro. Trata-se de um evento dedicado a séries, filmes e literatura voltados ao horror, ficção científica e literatura fantástica. Os leitores do Rio que quiserem me conhecer podem aparecer por lá, pois farei parte de uma mesa redonda que começa às 15:40. Mais informações e programação completa, no site do evento: http://darknessrisingevento.com (pra quem não tem banda larga, a página demora um pouco pra carregar, mas vale a espera).

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Filho

O filho passara a sonhar. De noite ela acordava ouvindo a voz dele no quarto. Eu vi o sol, dizia ele. Eu vi o sol. De manhã o menino não lembrava do sonho, nem de ter visto o sol.

Então ele adoeceu. Ficou magro, pálido e feio. Só durou mais três dias.

Em dezembro a mãe sozinha, cansada de ser sozinha, trouxe para casa um menino de rua com a mesma idade do filho morto. Comemoraram juntos o natal e o ano novo.

O filho morto, enquanto isso, estranhava o frio no corpo, mesmo estando diante do sol. Sentiu falta da mãe, e olhou para trás embora soubesse que não devia.

O que viu foi um outro menino com a mãe que era sua.

O filho morto sentiu ciúmes.

Então retornou.

domingo, 19 de setembro de 2010

Fui num aniversário ontem.

- E aí, Maurício, quanto tempo, e as novidades?

- Ah, lancei um livro!

- Mesmo? De que andar?

sábado, 18 de setembro de 2010

Reconciliação

Bateu-lhe na cara e disse que ele não prestava. Que não tinha vergonha. Que era um porco, cachorro, pilantra. Que não podia ter feito aquilo. Não com a melhor amiga dela. Porco, cachorro, pilantra. Bateu-lhe na cara de novo.

Mas quando ele, depois de apanhar, disse que a amava, ela parou de bater.

“Jura?”, a voz dela saiu tremida como o caminho da lágrima.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Tio Jorge

"Não quero ir", falou a irmã mais nova..

"Nem pensar", disse a irmã mais velha. "Não vou deixar você sozinha. Você vai ficar com Tio Jorge."

Tio Jorge era o vizinho. Não era parente.

"Não gosto do Tio Jorge."

"Para de besteira. Já falei que você fica com ele. Mamãe só volta amanhã e não vou deixar de encontrar o Biscoito por tua causa."

Biscoito era o namorado da irmã mais velha.

"Tio Jorge faz coisas comigo", a irmã mais nova choramingou.

A irmã mais velha estava se vestindo, não deu atenção. Quando ficou pronta, puxou a outra pelo braço. A menorzinha estava chorando baixo quando Tio Jorge abriu a porta.

"O senhor fica com ela um pouco?", a mais velha perguntou. "Preciso encontrar meu namorado."

"Claro", a face dele iluminou-se com o pedido. "Eu cuido dela. Pode ir."

"Eu volto às onze pra pegar ela. Pode ser?"

"Não precisa se apressar. Eu durmo tarde."

"Obrigada, Tio. Marcelle, vê se não dá trabalho pro Tio Jorge."

Quando a porta se fechou e Marcelle se viu, de novo, sozinha com Tio Jorge, o medo foi tanto que a bexiga não suportou.

Mas Tio Jorge não se importou com isso.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Li o texto abaixo no site Digestivo Cultural. Isso sim é uma história de terror.


Confissões de um escritor
Charles Kiefer

Recebi, meses atrás, a prestação de contas de direitos autorais do primeiro trimestre de 2010, de uma de minhas editoras. Um dos livros de que mais gosto, e ao qual dediquei um esforço especial, Logo tu repousarás também, de contos, vendeu, em três meses, 3 exemplares! Isto mesmo. Do Oiapoque ao Chuí, vendi três exemplares. Receberei, sobre estas vendas, R$ 8,47 (oito reais e quarenta e sete centavos)!

Esta é a realidade dos escritores brasileiros. Certo, talvez seja apenas a minha realidade. Na década de 80-90 do século passado, eu vendia milhares de exemplares de Caminhando na chuva, por semestre. Hoje, em editora grande, publicado em São Paulo, vendo entre 25 e 40 exemplares por bimestre. Vendo hoje cinquenta vezes menos do que vendia há uma década.

O que houve? Por que os meus leitores me abandonaram?

Em primeiro lugar, porque os meus textos ficaram obsoletos. A realidade, e é sobre isso que escrevo, não tem mais apelo mercadológico. Quem se interessa pela vida de sem-terras e pequenos agricultores, e outros infelizes e deserdados que habitam a minha Pau-d'Arco imaginária?

Tentei o assassino em série, migrante na capital, e não acertei. Escrevi um livro complicado, demoníaco, como sugeriu um crítico local, O escorpião da sexta-feira, que assusta, incomoda, e os novos leitores querem amenidades. Na era do hedonismo e da imortalidade, lembrar às pessoas que um dia elas irão repousar sob sete palmos de terra, como se dizia antigamente, é fazê-las largar o livro antes que ele queime as mãos desavisadas.

Em segundo lugar, porque ninguém mais compra livros. Ao menos não os meus! Enquanto o meu blog já foi lido por mais de 12 mil pessoas nos últimos três meses, vendi 3 exemplares de meu melhor livro de contos!

Em terceiro lugar, porque o número de escritores, na última década, multiplicou-se geometricamente, enquanto que o número de leitores (de livros) aumenta aritmeticamente, se é que aumenta. (Suspeito de todas as informações que dizem que os livros estão vendendo cada vez mais). Provei, estatisticamente, que a Feira do Livro de Porto Alegre perdeu, no último lustro (alguém ainda se lembra que isso significa quinquênio?), mais de 30 por cento de seus compradores.

Pela inflação no mercado brasileiro de escritores, sou diretamente responsável, pois minhas oficinas lançam no sistema literário dezenas de excelentes novos autores e autoras a cada ano. Há 15 anos, um grande escritor dos pampas me disse: "Pô, tu estás jogando contra a gente! Daqui a pouco, não teremos mais leitores".

Ele tinha razão.

Só me resta, agora, convencer aos meus alunos a comprarem livros. Alguns não compram sequer os lançamentos dos colegas. Não conheço tipo social menos solidário que escritor. Eu mesmo, que compro uma boa quantidade de livros de meus alunos em seus lançamentos (mas somente obra que tenha passado pelo meu crivo editorial), não o faço por caridade. A despesa que tenho já está embutida no preço da mensalidade...

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Maravilhas da natureza

Há uma espécie de vespa que ataca aranhas caranguejeiras. O veneno de sua ferroada paralisa a aranha, sem matar, para que a vespa possa carregar até o ninho a aranha ainda viva.

Dentro do ninho, a vespa deposita então um ovo sobre o abdômen da aranha. Desse ovo sairá uma larva.

Faminta, a larva irá devorar a aranha, consumindo-a até completar o seu desenvolvimento.

A aranha permanece viva durante todo o processo.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

História de amor

Só porque gostava de ficar sozinha no cemitério, os pais arrumaram-lhe um psiquiatra.

Na terceira semana, descobriu-se apaixonada pelo psiquiatra. E estava certa de que era correspondida, apesar da aliança cintilando no dedo dele.

À noite sonhava com ele e acordava chorando. Queria continuar a dormir e sonhar.

Desejo dolorido e doentio de presenteá-lo. De dar a ele um pouco do que ela era. Não poderia ser qualquer presente. Tinha que sair dela.

Separou então numa caixa um punhado de fios de cabelo. Acrescentou um dente que ela mesma arrancara com o alicate. Um naco de carne da perna que ela mesma cortara. A unha de um dos dedos da mão. E um vidrinho cheio de seu próprio sangue. Forrou tudo com uma folha de papel na qual escreveu um poema declarando seu amor, e deixou na porta dele a caixa com os presentes.

Quando ele encontrou a caixa, não entendeu. Depois, entendeu. Mas nada falou a ninguém.

Na consulta seguinte ele a seduziu. E cobrou dela o amor verdadeiro que lhe foi prometido. Quis vê-la cortar-se de novo, machucar-se, humilhar a si mesma na frente dele. Viu.

Pela primeira vez ela estava feliz. Cada novo pedaço de pele que arrancava, cada gota de lágrima e de sangue que vertia para ele, era amor que compartilhava. Por isso ela sorria quando estava chorando, amava quando estava sofrendo. Só não sabia que, enquanto achava que vivia, estava na verdade definhando.

Doente, fraca, ele não a quis mais. Abandonou-a num hospital. Aos pais dela, disse que era um caso perdido. Nunca foi visitá-la.

Ela parou de falar, parou de olhar, parou de comer.

Ele, enquanto isso, está quase conseguindo convencer a esposa a deixar-se furar com pequenas agulhas.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Recebi por email:


O velhinho, mineiro de Berlandia, está no hospital, nas úrtimas...

O padre está ao seu lado para dar-lhe a extrema-unção.

Ele lhe diz ao ouvido:


- Antes de morrer, reafirme a sua fé em nosso Senhor Jesus Cristo e renegue o Demônio.


Mas o velhinho fica quieto.


Ao que o padre insiste:

- Antes de morrer, reafirme a sua fé em nosso Senhor Jesus Cristo e renegue o Demônio.


E o velhinho... nada.


Então o padre pergunta:


- Por que é que o senhor não quer renegar o Demônio?


O velhinho responde:


- Enquanto eu num soubé pronde vou, num quero ficá de mar cum ninguém !


quarta-feira, 8 de setembro de 2010

"Louco eu não sou e com certeza não estou sonhando, mas amanhã vou morrer e hoje quero libertar minh'alma."

(Edgar Allan Poe, O Gato Preto)

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Casal

"Está doendo muito?", ele perguntou.

"Hum-rum", ela balançou a cabeça.

"Posso continuar?"

Ela não respondeu. O suor descia pela testa e passava pelo olho, parecendo uma lágrima.

"Pode", ela tremeu.

Ele então continuou.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O capítulo 2

O telefone só dava sinal de ocupado.

Teria de ir até o Hotel Camilo e tirar Nicole de lá. Perguntava a mim mesmo de que maneira faria isso, enquanto dava partida em minha motocicleta. Ou inventava uma desculpa que fosse muito bem elaborada, ou dizia a verdade. Escolher uma das opções era o que confundia e atormentava.

Mas atormentava-me também a desagradável impressão de estar sendo seguido. O que era pouco provável, visto que Casemiro, o assassino que agora me queria morto e de quem eu estava fugindo, decerto sabia exatamente onde me encontrar. Talvez até já estivesse lá, à minha espera. Mesmo assim a impressão permaneceu, firme como uma rocha, e procurei ir o mais rápido que era possível, não parando em nenhum dos sinais vermelhos que me surgiam à frente. Seguia tenso, temeroso, mas estranhamente decidido. Resolvera que a sucessão de mortes, amontoando-se ao meu redor em menos de um mês, havia se encerrado com a mulher no terraço. A próxima, se houvesse, teria de ser a minha. De ninguém mais.

Parei em frente ao hotel, mas do outro lado da rua. Não sem antes averiguar se a figura magra, comprida, de poucos cabelos e barba por fazer, que para mim se tornaria a encarnação do próprio diabo, estava por perto. Provavelmente estava, mas não o vi. Talvez escondido, apontando-me uma arma. Talvez  lá dentro, no hotel. Via-o em todos os rostos enquanto esperava na recepção que me anunciassem, e a cada passo que dava para dentro em direção ao apartamento de Nicole imaginava-o à espreita atrás de uma porta, numa curva do corredor ou pelas escadas. Era improvável que ele tentasse qualquer coisa dentro do hotel, pouco seguro. Mas eu já conhecia a fama de Casemiro, e seus últimos atos indicavam que não era de todo absurda a possibilidade de uma ação em local aberto e movimentado.

Foi então que me dei conta, já na porta do apartamento de Nicole, de que não havia visto uma pessoa sequer circulando pelos corredores, nem ouvi barulhos de qualquer natureza. Onde estavam os funcionários, os hóspedes?

Não pude prosseguir com minha desconfiança, pois naquele instante a porta abriu-se e o sorriso de Nicole proporcionou-me um imenso sentimento de alívio. Puxando-me para o interior do apartamento, a boa amiga a princípio abraçou-me com o entusiasmo das pessoas queridas que há muito não se vêem. Depois estranhou minha presença ali.

- Mas você não disse que tinha de sair?

- Eu tinha. E tenho. Só que preciso que você venha comigo. Está ocupada?

- Ocupada? Não.

- Ótimo. Então vamos arrumar suas coisas que eu vou tirar você deste hotel. Ligue pra recepção e peça o check-out.

- O quê?

Naquele instante não vi solução melhor para tirar Nicole do Hotel Camilo. Agitá-la, falar muito e explicar pouco, ao mesmo tempo em que ia arrumando sobre a cama as roupas e demais objetos pessoais que encontrava pela frente, me pareceu a maneira de obter melhores resultados em menos tempo. Nicole, embora obviamente relutasse, estranhasse meu incomum comportamento, terminou por julgar que se tratava de algum tipo de surpresa ou coisa parecida, ajudando-me assim na arrumação.

Terminada esta parte, viria nova preocupação: sair do apartamento, com Nicole e as bagagens, pelo corredor vazio. Não havia no entanto muito o que pensar. Após abrir a porta e olhar os dois extremos para onde o corredor se estendia, peguei-a pela mão e levei-a até o elevador. Nicole divertia-se com a maneira cautelosa com que eu andava e procurava fantasmas ao redor. Decerto pressupunha alguma maluquice ou brincadeira de minha parte, e quanto mais tempo permanecesse nessa ilusão melhor seria.

A demora do elevador, no entanto, seria novo motivo para preocupar-me.

- Parou – concluiu Nicole.

- Não. Não é possível.

- Como, não? Não sai do segundo andar.

Nicole tinha razão. Por mais que se chamasse, o elevador não subia. Era um mau sinal que terminou por encerrar a minha paciência, levando-me a agredir com um murro a porta do elevador.

- O que é isso? – Nicole assustou-se.

Teríamos de descer pelas escadas. Ficar mais expostos, mais vulneráveis do que já estávamos. O lobo nos queria em sua garganta, e como bons carneirinhos a ela nos encaminhávamos. Pensava nisto ao empurrar com o corpo a pesada porta que levava do corredor à escada, e ao ouvir seu arrastado ranger ecoando por todos os andares. Foi então que cogitei deixar Nicole ali, no corredor, e seguir sozinho. Seria a opção mais segura, se eu ao menos soubesse quais eram os planos de Casemiro. Alguém que, para matar apenas uma pessoa, leva junto toda a família da vítima, não poderia jamais ser considerada como previsível. Acabei resolvendo por levar Nicole comigo.

Nicole, por sinal, começava a impacientar-se com meu comportamento e com a ausência de explicações. Reclamava, e quando começou a aumentar o tom de voz tive de lhe pedir, rispidamente, que calasse a boca. Ela não calou, mas pelo menos baixou a voz.

- Que brincadeira mais babaca - ia resmungando. Depois de burro velho, dando pra brincar de polícia e ladrão... Quem mais está metido nessa palhaçada, o Marcelo?

Nesse instante ela calou-se, e eu também, ao ouvir o prolongado ruído de uma das portas se abrindo, mais prolongado ainda devido ao eco que atravessou nossos ouvidos e subiu pelas paredes como uma onda de ar quente. Ficamos imóveis sobre os degraus ouvindo a porta abrir-se, aparentemente no andar abaixo daquele em que nos encontrávamos, para em seguida fechar-se com um estrondo.

Esperamos. Impossível saber se as mãos que moveram a porta o fizeram para entrar ou para sair. Eu mal respirava, a fim de que o som do ar nas narinas não me impedisse de escutar qualquer movimento vindo de baixo. Temia o pior, temia os passos do demônio subindo o inferno para nos buscar, e contra ele só dispunha das mochilas que carregava, minhas e de Nicole. Esperava a qualquer instante a figura de Casemiro surgindo na curva da escada, e não conseguia pensar em nenhuma solução além de atirar-me sobre ele e enfrentá-lo, mesmo em desvantagem, mesmo desarmado.

Solução obviamente guiada pelo desespero. Antes que pudesse vê-la tornar-se realidade, porém, já estava puxando Nicole e saindo às pressas dali. Não tencionava saber que conseqüências teria meu ato de bravura, ou de insanidade. Tampouco pretendia me certificar da presença ou não de Casemiro naquele hotel. Só importava a minha própria presença ali dentro, que esperava eliminar o quanto antes.
Pensava nisso enquanto a porta batia às minhas costas. De volta aos corredores, a esperança de encontrarmos alguém seria frustrada uma segunda vez. Tudo estava estranhamente vazio e silencioso, e, exceto por um carrinho de camareira abandonado no corredor, não havia qualquer sinal de funcionários. Uma placa indicava estarmos no segundo andar, o que nos levou a verificar os elevadores. Talvez não estivessem verdadeiramente parados, talvez uma porta deixada aberta, e logo poderíamos descer. O que encontramos, no entanto, serviu para dar-me a certeza de que meu perseguidor se encontrava naquele hotel: colocado estrategicamente no chão, um sapato feminino bloqueava a porta de um dos elevadores, impedindo seu funcionamento. No outro elevador a mesma cena se repetia, mas no lugar do calçado era uma caixa de primeiros socorros que o segurava naquele andar.

A mensagem era clara, e eu não iria esperar o autor para discutí-la. Tratei de entrar no elevador com uma Nicole já sem qualquer vestígio de paciência e apertar o botão do térreo. Embora ainda assustado, não deixei de aproveitar um certo sentimento de alívio por enfim sair dali.

Mas qual não foi a minha surpresa quando, ao invés de descer, o elevador subiu.

- Merda! - gritei, o punho fechado se chocando contra a parede do elevador. Merda, merda!

- Pára com isso! - gritou Nicole.

O antigo elevador foi subindo lenta e dolorosamente, a cada andar aumentando em mim a certeza de que Casemiro lá estaria, no último, à nossa espera. A morte após a porta. Colocando-me à frente de Nicole, posicionei-me nos fundos da pequena cabine e esperei que o elevador chegasse, a grade de metal se abrisse e a porta de madeira revelasse o pior.

No décimo andar o elevador parou. Não havia mais para onde subir.

Ansiosos, ficamos esperando que algo acontecesse. Mas a porta não se abriu, e nem o pior se revelou. Por alguns segundos devo ter ficado imóvel, desorientado, mas logo apertava o botão para que o elevador retornasse ao térreo. Tremia da cabeça aos pés. Nicole percebeu, e sua impaciência enfim deu lugar à desconfiança de que toda aquela situação poderia não ser uma brincadeira. Quis saber o que estava acontecendo. O que eu havia aprontado. Fez cara de choro quando não lhe dei respostas, e só consegui prometer-lhe que contaria tudo, mas que antes precisávamos sair dali, que eu não suportaria um segundo a mais naquele diabo de hotel.

A recepção estava cheia de gente. Como se todos os funcionários e hóspedes ali estivessem reunidos, e o restante do prédio fosse propositalmente abandonado para que o assassino pudesse brincar conosco sem ser interrompido. Verifiquei todos os rostos, não reconheci Casemiro em nenhum deles. Enquanto Nicole pagava a curta estadia, fui procurá-lo na rua, e em algum defeito em minha moto. Atentava para a necessidade de combustível, quando ela se aproximou após sair do Hotel Camilo e atravessar a rua. Já não aparentava impaciência, tampouco medo. Seu rosto estava sério e transpirava cansaço com toda aquela inesperada correria.

-  Para onde vamos agora? - falou bem baixo, enquanto prendia o cabelo num rabo de cavalo.

- Sair daqui. Você vai ver quando chegarmos.

- Meu marido vai me ligar de noite. Estranhará quando disserem que já saí do hotel.

- Ligaremos para ele antes disso - falava enquanto ia mexendo na moto.

- Zeca, o que está acontecendo...?

Meus olhos então procuraram os dela. Nicole estava verdadeiramente angustiada, o que me inundou de remorsos por metê-la em toda aquela situação. No mesmo instante os olhos de Natália me vieram à cabeça, e junto com eles a vontade de largar tudo, de sentar ali mesmo no chão e chorar. Mas não era o momento.
Esquecesse, ainda tinha muito o que fazer.

A moto estava em ordem, faltando apenas terminar de encher o tanque. Procurando satisfazer a curiosidade de Nicole, disse-lhe que estava com problemas e lamentava muito tê-la envolvido neles, mas que tudo seria resolvido logo. Acabei sendo surpreendido pela reação dela.

- Antes ficasse calado - reclamou. Se quer me poupar, ao menos invente uma desculpa convincente. Ou me conte logo tudo de uma vez. “Estou com problemas”, isso eu posso ver muito bem, não preciso que você me diga. E pelo visto é coisa séria mesmo, porque grampearam até teu telefone. O que é, Zeca, se meteu com o tráfico, descobriu alguma falcatrua do governador e agora estão querendo te matar? Hem? O que é que você andou fazendo?

- Quem dera fosse algo tão heróico - lamentei, subindo na moto e esperando que ela fizesse o mesmo.

Depois que dei a partida e arranquei, vieram alguns minutos de silêncio. Nicole então diria, a cabeça aninhando-se em minhas costas:

- Todo mundo erra.

Fez isso decerto procurando dar-me algum conforto. Quase conseguiu.

Mas a impressão de que estava sendo seguido ainda era mais forte.