quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Eleições (1)

 Havia um senador que, diante da ameaça de não se reeleger, não titubeou. Reuniu os ingredientes necessários a um ritual e, à meia noite, invocou o diabo.

Não sabia se daria certo. Possuía há mais de dez anos o ritual numa folha de papel dada por um ex-padre já falecido, e nunca tivera necessidade de levá-lo a termo. Agora que a necessidade aparecia, imaginou se não estava diante de mais uma crendice, como as tantas que esse miserável povo brasileiro inventa para maquiar a sua ignorância, a sua selvageria, a sua nojeira.

Quando a sala em que estava começou a feder a enxofre, ele teve certeza de que daria certo. Do lugar marcado com sangue no chão, uma chama começou a subir e a tomar forma de homem.

“Boa noite, senador”, disse, afinal, o diabo materializado.

“Preciso de sua ajuda”, gaguejou o senador da República. “Esse ano posso perder meu mandato. Dois senadores serão eleitos para o Congresso Nacional, e as pesquisas dizem que estou em terceiro lugar, caindo para quarto. Eu não posso perder essa vaga. Não posso. A eleição é daqui a três dias. Estou desesperado. Não sei como reverter esse quadro.”

“O senhor quer que eu seja seu cabo eleitoral?”

Para alguém que vivia no inferno, o diabo tinha um senso de humor impecável.

“Preciso”, pediu o senador, “que você elimine meus concorrentes. Há uma mulher. E um viado. Um sodomita. Que estão na minha frente. Se eles morressem, eu seria imbatível. Você pode fazer isso.”

“Posso. Claro. Mas há um preço.”

“Eu sei. A minha alma. É sua.”

“Hoje não. Hoje quero fazer uma brincadeira diferente. Não estou interessado em sua alma.”

“Não?”, o senador sorriu, aliviado. Ia ganhar a eleição sem precisar vender a alma ao diabo. Seria mais fácil do que imaginava. “E o que você quer de mim?”

“A sua neta.”

“Minha neta?”

“Sua neta.”

“Mas ela é uma criança. Tem só quinze anos.”

“E é virgem. Eu sei.”

“Você não prefere a minha alma?”

“Claro que não.”

“Eu posso conseguir outra menina para você. Da mesma idade. Virgem igual. Possuo contatos.”

“Não tenho o dia todo, senador. É pegar ou largar.”

“Eu pego. Eu pego. Pode levar a minha neta. Quer que eu vá buscá-la?”

“Não precisa. Eu sei onde ela dorme.”




quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Orégano

"Passe o orégano, por favor."

Seria mais fácil matar você. Tão mais fácil do que aturar-lhe diariamente as acusações, as cobranças, as agressões. Tão mais simples do que fingir ser amor, e não rotina, amor, e não carência, amor, e não dinheiro, a cola que ainda nos mantém unidos depois de todos esses anos. Tão mais honesto do que sorrir diante das luzes e das fotos e da inveja dos que sonham com um convívio tão longo e harmonioso quanto o nosso. Tão menos doloroso do que levar essa sobrevida de quem foi condenado a apodrecer segurando a mão de alguém que se odeia. Tão mais belo, mais intenso, mais verdadeiro, seria matar você. E no entanto...

"Pois não, meu amor. Aqui está."

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

"O Adversário" na Darkness Rising

Chegamos por volta de 14:30, eu, Alessandra e Cláudio, no Clube do América, onde seria realizado o evento. A mesa redonda da qual participaria começou com atraso, e vários autores presentes, eu inclusive, não tiveram tempo para falar. Por sorte, me convidaram depois para participar de outra mesa redonda, sobre o mercado para a literatura fantástica no Brasil. Dessa vez deu pra falar, mesmo sem entender nada do assunto.

O evento foi agradável, os organizadores simpáticos, e consegui trocar algumas figurinhas com o escritor Gerson Couto, autor de Hemisfério-Dorso (blog aqui). Não consegui, no entanto, me livrar da sensação horrível de que uma presença gelada, escura e triste circulava pelos mesmos locais que eu, me acompanhando. Perguntei disfarçadamente a Alessandra e Cláudio, mas eles pareceram nada sentir.

As fotos abaixo são cortesia de Cláudio Beserra.

A primeira mesa


Gerson Couto, eu e Andrés Carreiro


A segunda mesa


Discorrendo sobre o mercado da literatura fantástica no Brasil


O salão do Café Literário


O estande


Um autógrafo


Outro autógrafo


Com Alessandra


Com Cláudio





sábado, 25 de setembro de 2010

Gui

"Acho que estou vendo coisas", ela disse.

"Vendo o quê?", ele continuou olhando a TV.

"Um anãozinho. Tipo um duendezinho. Estava ali, perto da estante. Quando me viu, correu lá pra dentro."

"Ok."

Ela sentou junto dele e aconchegou-se em seus ombros. Na TV, o apresentador perguntou à criança se ela estava pronta para comer um prato de vermes em troca de um ingresso para o show de uma cantora baiana, com direito a visita ao camarim.

"Claro", respondeu a criança.

"Então pode cair de boca", disse o apresentador. "E bom apetite."

Enquanto a criança comia vermes, o anãozinho passou de novo pela sala.

"Você viu?", ela perguntou.

"Vi."

Ele se levantou e foi atrás do anãozinho. Ela se levantou também.

"Fica aí", ele mandou.

"Toma cuidado."

Ela ficou olhando ele seguir pelo pequeno corredor depois da sala onde estavam. Entrou no primeiro quarto, que eles usavam como escritório.

"Gui?", ela perguntou. "Está tudo bem?"

Ele não respondeu.

"Gui?"

"Está."

Na TV, a criança terminara o prato de vermes e estava pedindo mais.

"Gui?"

Dava para ouvir algum barulho vindo do escritório. Gui estava revirando tudo, procurando o anãozinho.

"Gui? Gui?"

Era costume dele não responder. Dessa vez, porém, ela ficou preocupada. Os ruídos no escritório haviam cessado, e ele não respondia.

"Gui, responde. Por favor."

Quando Gui voltou para a sala, estava diferente. Não olhava para ela. Olhava para o chão.

"Gui, você encontrou o anãozinho?"

"Não."

"Está tudo bem?"

"Não."

Gui caminhou até a janela e a abriu. Passou a perna esquerda para o lado de fora do prédio. Estavam no nono andar.

"Gui, o que você está fazendo? Gui? GUI!"

Gui passou o resto do corpo e se jogou. Ela pôs-se a gritar, chorar, entrou em crise. Na TV, a criança não parava de comer os vermes que, agora, saíam-lhe também pelas narinas e pelos olhos.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Mãe

“Fique comigo.”

Foi a única coisa que a mãe dele pediu. A velha estava no leito de morte, sozinha, com medo. Tudo o que pedia era para não morrer abandonada.

“Fique comigo, por favor, fique comigo.”

Ele estava no bar quando ela morreu. Bebendo e reclamando. Contava, para quem quisesse ouvir, o quanto já havia gasto com internação, remédio, médico. Que despesa, agora, só com a funerária. Foi nesse ponto da história que o celular tocou, e ele recebeu a notícia do óbito. Como que transformado em outra pessoa ele se calou, saiu do bar e foi procurar um canto para ficar chorando. Os olhos ainda inchados quando chegou ao hospital.

Durante o enterro precisaram ampará-lo. Só depois de consumada a perda é que foi dar-se conta do quanto gostava da mãe, e chorou sem parar quando o caixão foi enfiado na gaveta e lacrado com cimento. Em casa a vizinha, amiga e da mesma idade da mãe, veio fazer-lhe companhia. Ele já não chorava, mas também não comia. Recusava tudo e não saía da cama, corroído pelo remorso.

Às dez da noite a vizinha não quis ficar mais lá. De repente, ficar na casa da defunta deu-lhe uns arrepios, e ela ficou com medo. Pediu desculpas, disse a ele que tinha afazeres em casa, convidou-o a visitá-la. Podia até passar a noite em sua casa. Ele, no entanto, não quis sair da cama.

Passou um tempo e ele ouviu um ruído no quarto. Quando abriu os olhos precisou acostumar-se com a escuridão, até perceber um vulto no meio das sombras.

“Mãe?”, ele perguntou. “Mãe, é você?”

Tentou levantar, mas o corpo estava como preso, colado à cama. Forçou a vista. Parecia ter mesmo alguém no quarto.

“Mãe?”

Na manhã seguinte havia perdido a sensibilidade nos pés. Não os sentia mais. Pisar o chão se tornara o mesmo que pisar o nada, e ele se desequilibrava ao tentar andar. Precisou da ajuda da vizinha para ir ao médico. Fez exames. Exames que não acusaram nada. Precisou da vizinha de novo, ao voltar para casa.

À noite, o vulto nas sombras permanecia no mesmo canto escuro do quarto. Não respondia a seus pedidos de perdão. Nem se comovia com seu choro assustado. Ele passara a pedir à vizinha que deixasse a luz acesa ao sair, mas bastava ela fechar a porta que a luz do quarto se apagava sozinha. Ele implorava para que a mãe morta o deixasse em paz.

Passados dois meses, ele não andava mais. Para tudo necessitava cadeira de rodas. A perda da sensibilidade evoluíra até o alto das pernas, transformando-o num aleijado. A vizinha cuidava dele durante o dia, e era a única pessoa que acreditava quando ele culpava a mãe por não poder mais andar.

“Durma aqui”, ele pediu à vizinha. “Só hoje.”

Ele sabia que logo a mãe estaria no quarto. Esperava que, com a vizinha ali, ela não viesse.

“Fique. Por favor.”

A vizinha estava com o coração apertado. Gostava dele como a um filho, mas não ficou. E, naquela noite, de novo, ao bater a porta, o vulto no escuro apareceu.

“Por que a senhora faz isso?”, ele estendia as mãos à mãe e chorava. “Por que me deixou assim?”

Como sempre, não houve resposta. Mas dessa vez seria diferente. Sem nada dizer, o vulto passou diante da cama onde ele estava e dirigiu-se até a porta. Quando saiu do quarto, deixando no ar um cheiro de folhagem seca, ele entendeu apavorado que o vulto havia ido atrás da vizinha, e então gritou. Mas não conseguiu sair da cama.

A vizinha nunca mais retornou. O vulto, no entanto, toda noite vem vê-lo. Sem comer há dias, ele emagreceu muito, e passa todo tempo com os olhos voltados para um ponto qualquer do quarto. Só lembraram dele quando o mau cheiro já ultrapassava as paredes do apartamento. Quando enfim tamparam com cimento a gaveta mortuária, ninguém reparou que o caixão pesava como se carregasse dois corpos no lugar de um.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Darkness Rising

No próximo domingo, dia 26, o Clube do América vai sediar o primeiro Darkness Rising do Rio de Janeiro. Trata-se de um evento dedicado a séries, filmes e literatura voltados ao horror, ficção científica e literatura fantástica. Os leitores do Rio que quiserem me conhecer podem aparecer por lá, pois farei parte de uma mesa redonda que começa às 15:40. Mais informações e programação completa, no site do evento: http://darknessrisingevento.com (pra quem não tem banda larga, a página demora um pouco pra carregar, mas vale a espera).

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Filho

O filho passara a sonhar. De noite ela acordava ouvindo a voz dele no quarto. Eu vi o sol, dizia ele. Eu vi o sol. De manhã o menino não lembrava do sonho, nem de ter visto o sol.

Então ele adoeceu. Ficou magro, pálido e feio. Só durou mais três dias.

Em dezembro a mãe sozinha, cansada de ser sozinha, trouxe para casa um menino de rua com a mesma idade do filho morto. Comemoraram juntos o natal e o ano novo.

O filho morto, enquanto isso, estranhava o frio no corpo, mesmo estando diante do sol. Sentiu falta da mãe, e olhou para trás embora soubesse que não devia.

O que viu foi um outro menino com a mãe que era sua.

O filho morto sentiu ciúmes.

Então retornou.

domingo, 19 de setembro de 2010

Fui num aniversário ontem.

- E aí, Maurício, quanto tempo, e as novidades?

- Ah, lancei um livro!

- Mesmo? De que andar?

sábado, 18 de setembro de 2010

Reconciliação

Bateu-lhe na cara e disse que ele não prestava. Que não tinha vergonha. Que era um porco, cachorro, pilantra. Que não podia ter feito aquilo. Não com a melhor amiga dela. Porco, cachorro, pilantra. Bateu-lhe na cara de novo.

Mas quando ele, depois de apanhar, disse que a amava, ela parou de bater.

“Jura?”, a voz dela saiu tremida como o caminho da lágrima.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Tio Jorge

"Não quero ir", falou a irmã mais nova..

"Nem pensar", disse a irmã mais velha. "Não vou deixar você sozinha. Você vai ficar com Tio Jorge."

Tio Jorge era o vizinho. Não era parente.

"Não gosto do Tio Jorge."

"Para de besteira. Já falei que você fica com ele. Mamãe só volta amanhã e não vou deixar de encontrar o Biscoito por tua causa."

Biscoito era o namorado da irmã mais velha.

"Tio Jorge faz coisas comigo", a irmã mais nova choramingou.

A irmã mais velha estava se vestindo, não deu atenção. Quando ficou pronta, puxou a outra pelo braço. A menorzinha estava chorando baixo quando Tio Jorge abriu a porta.

"O senhor fica com ela um pouco?", a mais velha perguntou. "Preciso encontrar meu namorado."

"Claro", a face dele iluminou-se com o pedido. "Eu cuido dela. Pode ir."

"Eu volto às onze pra pegar ela. Pode ser?"

"Não precisa se apressar. Eu durmo tarde."

"Obrigada, Tio. Marcelle, vê se não dá trabalho pro Tio Jorge."

Quando a porta se fechou e Marcelle se viu, de novo, sozinha com Tio Jorge, o medo foi tanto que a bexiga não suportou.

Mas Tio Jorge não se importou com isso.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Li o texto abaixo no site Digestivo Cultural. Isso sim é uma história de terror.


Confissões de um escritor
Charles Kiefer

Recebi, meses atrás, a prestação de contas de direitos autorais do primeiro trimestre de 2010, de uma de minhas editoras. Um dos livros de que mais gosto, e ao qual dediquei um esforço especial, Logo tu repousarás também, de contos, vendeu, em três meses, 3 exemplares! Isto mesmo. Do Oiapoque ao Chuí, vendi três exemplares. Receberei, sobre estas vendas, R$ 8,47 (oito reais e quarenta e sete centavos)!

Esta é a realidade dos escritores brasileiros. Certo, talvez seja apenas a minha realidade. Na década de 80-90 do século passado, eu vendia milhares de exemplares de Caminhando na chuva, por semestre. Hoje, em editora grande, publicado em São Paulo, vendo entre 25 e 40 exemplares por bimestre. Vendo hoje cinquenta vezes menos do que vendia há uma década.

O que houve? Por que os meus leitores me abandonaram?

Em primeiro lugar, porque os meus textos ficaram obsoletos. A realidade, e é sobre isso que escrevo, não tem mais apelo mercadológico. Quem se interessa pela vida de sem-terras e pequenos agricultores, e outros infelizes e deserdados que habitam a minha Pau-d'Arco imaginária?

Tentei o assassino em série, migrante na capital, e não acertei. Escrevi um livro complicado, demoníaco, como sugeriu um crítico local, O escorpião da sexta-feira, que assusta, incomoda, e os novos leitores querem amenidades. Na era do hedonismo e da imortalidade, lembrar às pessoas que um dia elas irão repousar sob sete palmos de terra, como se dizia antigamente, é fazê-las largar o livro antes que ele queime as mãos desavisadas.

Em segundo lugar, porque ninguém mais compra livros. Ao menos não os meus! Enquanto o meu blog já foi lido por mais de 12 mil pessoas nos últimos três meses, vendi 3 exemplares de meu melhor livro de contos!

Em terceiro lugar, porque o número de escritores, na última década, multiplicou-se geometricamente, enquanto que o número de leitores (de livros) aumenta aritmeticamente, se é que aumenta. (Suspeito de todas as informações que dizem que os livros estão vendendo cada vez mais). Provei, estatisticamente, que a Feira do Livro de Porto Alegre perdeu, no último lustro (alguém ainda se lembra que isso significa quinquênio?), mais de 30 por cento de seus compradores.

Pela inflação no mercado brasileiro de escritores, sou diretamente responsável, pois minhas oficinas lançam no sistema literário dezenas de excelentes novos autores e autoras a cada ano. Há 15 anos, um grande escritor dos pampas me disse: "Pô, tu estás jogando contra a gente! Daqui a pouco, não teremos mais leitores".

Ele tinha razão.

Só me resta, agora, convencer aos meus alunos a comprarem livros. Alguns não compram sequer os lançamentos dos colegas. Não conheço tipo social menos solidário que escritor. Eu mesmo, que compro uma boa quantidade de livros de meus alunos em seus lançamentos (mas somente obra que tenha passado pelo meu crivo editorial), não o faço por caridade. A despesa que tenho já está embutida no preço da mensalidade...

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Maravilhas da natureza

Há uma espécie de vespa que ataca aranhas caranguejeiras. O veneno de sua ferroada paralisa a aranha, sem matar, para que a vespa possa carregar até o ninho a aranha ainda viva.

Dentro do ninho, a vespa deposita então um ovo sobre o abdômen da aranha. Desse ovo sairá uma larva.

Faminta, a larva irá devorar a aranha, consumindo-a até completar o seu desenvolvimento.

A aranha permanece viva durante todo o processo.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

História de amor

Só porque gostava de ficar sozinha no cemitério, os pais arrumaram-lhe um psiquiatra.

Na terceira semana, descobriu-se apaixonada pelo psiquiatra. E estava certa de que era correspondida, apesar da aliança cintilando no dedo dele.

À noite sonhava com ele e acordava chorando. Queria continuar a dormir e sonhar.

Desejo dolorido e doentio de presenteá-lo. De dar a ele um pouco do que ela era. Não poderia ser qualquer presente. Tinha que sair dela.

Separou então numa caixa um punhado de fios de cabelo. Acrescentou um dente que ela mesma arrancara com o alicate. Um naco de carne da perna que ela mesma cortara. A unha de um dos dedos da mão. E um vidrinho cheio de seu próprio sangue. Forrou tudo com uma folha de papel na qual escreveu um poema declarando seu amor, e deixou na porta dele a caixa com os presentes.

Quando ele encontrou a caixa, não entendeu. Depois, entendeu. Mas nada falou a ninguém.

Na consulta seguinte ele a seduziu. E cobrou dela o amor verdadeiro que lhe foi prometido. Quis vê-la cortar-se de novo, machucar-se, humilhar a si mesma na frente dele. Viu.

Pela primeira vez ela estava feliz. Cada novo pedaço de pele que arrancava, cada gota de lágrima e de sangue que vertia para ele, era amor que compartilhava. Por isso ela sorria quando estava chorando, amava quando estava sofrendo. Só não sabia que, enquanto achava que vivia, estava na verdade definhando.

Doente, fraca, ele não a quis mais. Abandonou-a num hospital. Aos pais dela, disse que era um caso perdido. Nunca foi visitá-la.

Ela parou de falar, parou de olhar, parou de comer.

Ele, enquanto isso, está quase conseguindo convencer a esposa a deixar-se furar com pequenas agulhas.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Recebi por email:


O velhinho, mineiro de Berlandia, está no hospital, nas úrtimas...

O padre está ao seu lado para dar-lhe a extrema-unção.

Ele lhe diz ao ouvido:


- Antes de morrer, reafirme a sua fé em nosso Senhor Jesus Cristo e renegue o Demônio.


Mas o velhinho fica quieto.


Ao que o padre insiste:

- Antes de morrer, reafirme a sua fé em nosso Senhor Jesus Cristo e renegue o Demônio.


E o velhinho... nada.


Então o padre pergunta:


- Por que é que o senhor não quer renegar o Demônio?


O velhinho responde:


- Enquanto eu num soubé pronde vou, num quero ficá de mar cum ninguém !


quarta-feira, 8 de setembro de 2010

"Louco eu não sou e com certeza não estou sonhando, mas amanhã vou morrer e hoje quero libertar minh'alma."

(Edgar Allan Poe, O Gato Preto)

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Casal

"Está doendo muito?", ele perguntou.

"Hum-rum", ela balançou a cabeça.

"Posso continuar?"

Ela não respondeu. O suor descia pela testa e passava pelo olho, parecendo uma lágrima.

"Pode", ela tremeu.

Ele então continuou.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O capítulo 2

O telefone só dava sinal de ocupado.

Teria de ir até o Hotel Camilo e tirar Nicole de lá. Perguntava a mim mesmo de que maneira faria isso, enquanto dava partida em minha motocicleta. Ou inventava uma desculpa que fosse muito bem elaborada, ou dizia a verdade. Escolher uma das opções era o que confundia e atormentava.

Mas atormentava-me também a desagradável impressão de estar sendo seguido. O que era pouco provável, visto que Casemiro, o assassino que agora me queria morto e de quem eu estava fugindo, decerto sabia exatamente onde me encontrar. Talvez até já estivesse lá, à minha espera. Mesmo assim a impressão permaneceu, firme como uma rocha, e procurei ir o mais rápido que era possível, não parando em nenhum dos sinais vermelhos que me surgiam à frente. Seguia tenso, temeroso, mas estranhamente decidido. Resolvera que a sucessão de mortes, amontoando-se ao meu redor em menos de um mês, havia se encerrado com a mulher no terraço. A próxima, se houvesse, teria de ser a minha. De ninguém mais.

Parei em frente ao hotel, mas do outro lado da rua. Não sem antes averiguar se a figura magra, comprida, de poucos cabelos e barba por fazer, que para mim se tornaria a encarnação do próprio diabo, estava por perto. Provavelmente estava, mas não o vi. Talvez escondido, apontando-me uma arma. Talvez  lá dentro, no hotel. Via-o em todos os rostos enquanto esperava na recepção que me anunciassem, e a cada passo que dava para dentro em direção ao apartamento de Nicole imaginava-o à espreita atrás de uma porta, numa curva do corredor ou pelas escadas. Era improvável que ele tentasse qualquer coisa dentro do hotel, pouco seguro. Mas eu já conhecia a fama de Casemiro, e seus últimos atos indicavam que não era de todo absurda a possibilidade de uma ação em local aberto e movimentado.

Foi então que me dei conta, já na porta do apartamento de Nicole, de que não havia visto uma pessoa sequer circulando pelos corredores, nem ouvi barulhos de qualquer natureza. Onde estavam os funcionários, os hóspedes?

Não pude prosseguir com minha desconfiança, pois naquele instante a porta abriu-se e o sorriso de Nicole proporcionou-me um imenso sentimento de alívio. Puxando-me para o interior do apartamento, a boa amiga a princípio abraçou-me com o entusiasmo das pessoas queridas que há muito não se vêem. Depois estranhou minha presença ali.

- Mas você não disse que tinha de sair?

- Eu tinha. E tenho. Só que preciso que você venha comigo. Está ocupada?

- Ocupada? Não.

- Ótimo. Então vamos arrumar suas coisas que eu vou tirar você deste hotel. Ligue pra recepção e peça o check-out.

- O quê?

Naquele instante não vi solução melhor para tirar Nicole do Hotel Camilo. Agitá-la, falar muito e explicar pouco, ao mesmo tempo em que ia arrumando sobre a cama as roupas e demais objetos pessoais que encontrava pela frente, me pareceu a maneira de obter melhores resultados em menos tempo. Nicole, embora obviamente relutasse, estranhasse meu incomum comportamento, terminou por julgar que se tratava de algum tipo de surpresa ou coisa parecida, ajudando-me assim na arrumação.

Terminada esta parte, viria nova preocupação: sair do apartamento, com Nicole e as bagagens, pelo corredor vazio. Não havia no entanto muito o que pensar. Após abrir a porta e olhar os dois extremos para onde o corredor se estendia, peguei-a pela mão e levei-a até o elevador. Nicole divertia-se com a maneira cautelosa com que eu andava e procurava fantasmas ao redor. Decerto pressupunha alguma maluquice ou brincadeira de minha parte, e quanto mais tempo permanecesse nessa ilusão melhor seria.

A demora do elevador, no entanto, seria novo motivo para preocupar-me.

- Parou – concluiu Nicole.

- Não. Não é possível.

- Como, não? Não sai do segundo andar.

Nicole tinha razão. Por mais que se chamasse, o elevador não subia. Era um mau sinal que terminou por encerrar a minha paciência, levando-me a agredir com um murro a porta do elevador.

- O que é isso? – Nicole assustou-se.

Teríamos de descer pelas escadas. Ficar mais expostos, mais vulneráveis do que já estávamos. O lobo nos queria em sua garganta, e como bons carneirinhos a ela nos encaminhávamos. Pensava nisto ao empurrar com o corpo a pesada porta que levava do corredor à escada, e ao ouvir seu arrastado ranger ecoando por todos os andares. Foi então que cogitei deixar Nicole ali, no corredor, e seguir sozinho. Seria a opção mais segura, se eu ao menos soubesse quais eram os planos de Casemiro. Alguém que, para matar apenas uma pessoa, leva junto toda a família da vítima, não poderia jamais ser considerada como previsível. Acabei resolvendo por levar Nicole comigo.

Nicole, por sinal, começava a impacientar-se com meu comportamento e com a ausência de explicações. Reclamava, e quando começou a aumentar o tom de voz tive de lhe pedir, rispidamente, que calasse a boca. Ela não calou, mas pelo menos baixou a voz.

- Que brincadeira mais babaca - ia resmungando. Depois de burro velho, dando pra brincar de polícia e ladrão... Quem mais está metido nessa palhaçada, o Marcelo?

Nesse instante ela calou-se, e eu também, ao ouvir o prolongado ruído de uma das portas se abrindo, mais prolongado ainda devido ao eco que atravessou nossos ouvidos e subiu pelas paredes como uma onda de ar quente. Ficamos imóveis sobre os degraus ouvindo a porta abrir-se, aparentemente no andar abaixo daquele em que nos encontrávamos, para em seguida fechar-se com um estrondo.

Esperamos. Impossível saber se as mãos que moveram a porta o fizeram para entrar ou para sair. Eu mal respirava, a fim de que o som do ar nas narinas não me impedisse de escutar qualquer movimento vindo de baixo. Temia o pior, temia os passos do demônio subindo o inferno para nos buscar, e contra ele só dispunha das mochilas que carregava, minhas e de Nicole. Esperava a qualquer instante a figura de Casemiro surgindo na curva da escada, e não conseguia pensar em nenhuma solução além de atirar-me sobre ele e enfrentá-lo, mesmo em desvantagem, mesmo desarmado.

Solução obviamente guiada pelo desespero. Antes que pudesse vê-la tornar-se realidade, porém, já estava puxando Nicole e saindo às pressas dali. Não tencionava saber que conseqüências teria meu ato de bravura, ou de insanidade. Tampouco pretendia me certificar da presença ou não de Casemiro naquele hotel. Só importava a minha própria presença ali dentro, que esperava eliminar o quanto antes.
Pensava nisso enquanto a porta batia às minhas costas. De volta aos corredores, a esperança de encontrarmos alguém seria frustrada uma segunda vez. Tudo estava estranhamente vazio e silencioso, e, exceto por um carrinho de camareira abandonado no corredor, não havia qualquer sinal de funcionários. Uma placa indicava estarmos no segundo andar, o que nos levou a verificar os elevadores. Talvez não estivessem verdadeiramente parados, talvez uma porta deixada aberta, e logo poderíamos descer. O que encontramos, no entanto, serviu para dar-me a certeza de que meu perseguidor se encontrava naquele hotel: colocado estrategicamente no chão, um sapato feminino bloqueava a porta de um dos elevadores, impedindo seu funcionamento. No outro elevador a mesma cena se repetia, mas no lugar do calçado era uma caixa de primeiros socorros que o segurava naquele andar.

A mensagem era clara, e eu não iria esperar o autor para discutí-la. Tratei de entrar no elevador com uma Nicole já sem qualquer vestígio de paciência e apertar o botão do térreo. Embora ainda assustado, não deixei de aproveitar um certo sentimento de alívio por enfim sair dali.

Mas qual não foi a minha surpresa quando, ao invés de descer, o elevador subiu.

- Merda! - gritei, o punho fechado se chocando contra a parede do elevador. Merda, merda!

- Pára com isso! - gritou Nicole.

O antigo elevador foi subindo lenta e dolorosamente, a cada andar aumentando em mim a certeza de que Casemiro lá estaria, no último, à nossa espera. A morte após a porta. Colocando-me à frente de Nicole, posicionei-me nos fundos da pequena cabine e esperei que o elevador chegasse, a grade de metal se abrisse e a porta de madeira revelasse o pior.

No décimo andar o elevador parou. Não havia mais para onde subir.

Ansiosos, ficamos esperando que algo acontecesse. Mas a porta não se abriu, e nem o pior se revelou. Por alguns segundos devo ter ficado imóvel, desorientado, mas logo apertava o botão para que o elevador retornasse ao térreo. Tremia da cabeça aos pés. Nicole percebeu, e sua impaciência enfim deu lugar à desconfiança de que toda aquela situação poderia não ser uma brincadeira. Quis saber o que estava acontecendo. O que eu havia aprontado. Fez cara de choro quando não lhe dei respostas, e só consegui prometer-lhe que contaria tudo, mas que antes precisávamos sair dali, que eu não suportaria um segundo a mais naquele diabo de hotel.

A recepção estava cheia de gente. Como se todos os funcionários e hóspedes ali estivessem reunidos, e o restante do prédio fosse propositalmente abandonado para que o assassino pudesse brincar conosco sem ser interrompido. Verifiquei todos os rostos, não reconheci Casemiro em nenhum deles. Enquanto Nicole pagava a curta estadia, fui procurá-lo na rua, e em algum defeito em minha moto. Atentava para a necessidade de combustível, quando ela se aproximou após sair do Hotel Camilo e atravessar a rua. Já não aparentava impaciência, tampouco medo. Seu rosto estava sério e transpirava cansaço com toda aquela inesperada correria.

-  Para onde vamos agora? - falou bem baixo, enquanto prendia o cabelo num rabo de cavalo.

- Sair daqui. Você vai ver quando chegarmos.

- Meu marido vai me ligar de noite. Estranhará quando disserem que já saí do hotel.

- Ligaremos para ele antes disso - falava enquanto ia mexendo na moto.

- Zeca, o que está acontecendo...?

Meus olhos então procuraram os dela. Nicole estava verdadeiramente angustiada, o que me inundou de remorsos por metê-la em toda aquela situação. No mesmo instante os olhos de Natália me vieram à cabeça, e junto com eles a vontade de largar tudo, de sentar ali mesmo no chão e chorar. Mas não era o momento.
Esquecesse, ainda tinha muito o que fazer.

A moto estava em ordem, faltando apenas terminar de encher o tanque. Procurando satisfazer a curiosidade de Nicole, disse-lhe que estava com problemas e lamentava muito tê-la envolvido neles, mas que tudo seria resolvido logo. Acabei sendo surpreendido pela reação dela.

- Antes ficasse calado - reclamou. Se quer me poupar, ao menos invente uma desculpa convincente. Ou me conte logo tudo de uma vez. “Estou com problemas”, isso eu posso ver muito bem, não preciso que você me diga. E pelo visto é coisa séria mesmo, porque grampearam até teu telefone. O que é, Zeca, se meteu com o tráfico, descobriu alguma falcatrua do governador e agora estão querendo te matar? Hem? O que é que você andou fazendo?

- Quem dera fosse algo tão heróico - lamentei, subindo na moto e esperando que ela fizesse o mesmo.

Depois que dei a partida e arranquei, vieram alguns minutos de silêncio. Nicole então diria, a cabeça aninhando-se em minhas costas:

- Todo mundo erra.

Fez isso decerto procurando dar-me algum conforto. Quase conseguiu.

Mas a impressão de que estava sendo seguido ainda era mais forte.