quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Mãe

“Fique comigo.”

Foi a única coisa que a mãe dele pediu. A velha estava no leito de morte, sozinha, com medo. Tudo o que pedia era para não morrer abandonada.

“Fique comigo, por favor, fique comigo.”

Ele estava no bar quando ela morreu. Bebendo e reclamando. Contava, para quem quisesse ouvir, o quanto já havia gasto com internação, remédio, médico. Que despesa, agora, só com a funerária. Foi nesse ponto da história que o celular tocou, e ele recebeu a notícia do óbito. Como que transformado em outra pessoa ele se calou, saiu do bar e foi procurar um canto para ficar chorando. Os olhos ainda inchados quando chegou ao hospital.

Durante o enterro precisaram ampará-lo. Só depois de consumada a perda é que foi dar-se conta do quanto gostava da mãe, e chorou sem parar quando o caixão foi enfiado na gaveta e lacrado com cimento. Em casa a vizinha, amiga e da mesma idade da mãe, veio fazer-lhe companhia. Ele já não chorava, mas também não comia. Recusava tudo e não saía da cama, corroído pelo remorso.

Às dez da noite a vizinha não quis ficar mais lá. De repente, ficar na casa da defunta deu-lhe uns arrepios, e ela ficou com medo. Pediu desculpas, disse a ele que tinha afazeres em casa, convidou-o a visitá-la. Podia até passar a noite em sua casa. Ele, no entanto, não quis sair da cama.

Passou um tempo e ele ouviu um ruído no quarto. Quando abriu os olhos precisou acostumar-se com a escuridão, até perceber um vulto no meio das sombras.

“Mãe?”, ele perguntou. “Mãe, é você?”

Tentou levantar, mas o corpo estava como preso, colado à cama. Forçou a vista. Parecia ter mesmo alguém no quarto.

“Mãe?”

Na manhã seguinte havia perdido a sensibilidade nos pés. Não os sentia mais. Pisar o chão se tornara o mesmo que pisar o nada, e ele se desequilibrava ao tentar andar. Precisou da ajuda da vizinha para ir ao médico. Fez exames. Exames que não acusaram nada. Precisou da vizinha de novo, ao voltar para casa.

À noite, o vulto nas sombras permanecia no mesmo canto escuro do quarto. Não respondia a seus pedidos de perdão. Nem se comovia com seu choro assustado. Ele passara a pedir à vizinha que deixasse a luz acesa ao sair, mas bastava ela fechar a porta que a luz do quarto se apagava sozinha. Ele implorava para que a mãe morta o deixasse em paz.

Passados dois meses, ele não andava mais. Para tudo necessitava cadeira de rodas. A perda da sensibilidade evoluíra até o alto das pernas, transformando-o num aleijado. A vizinha cuidava dele durante o dia, e era a única pessoa que acreditava quando ele culpava a mãe por não poder mais andar.

“Durma aqui”, ele pediu à vizinha. “Só hoje.”

Ele sabia que logo a mãe estaria no quarto. Esperava que, com a vizinha ali, ela não viesse.

“Fique. Por favor.”

A vizinha estava com o coração apertado. Gostava dele como a um filho, mas não ficou. E, naquela noite, de novo, ao bater a porta, o vulto no escuro apareceu.

“Por que a senhora faz isso?”, ele estendia as mãos à mãe e chorava. “Por que me deixou assim?”

Como sempre, não houve resposta. Mas dessa vez seria diferente. Sem nada dizer, o vulto passou diante da cama onde ele estava e dirigiu-se até a porta. Quando saiu do quarto, deixando no ar um cheiro de folhagem seca, ele entendeu apavorado que o vulto havia ido atrás da vizinha, e então gritou. Mas não conseguiu sair da cama.

A vizinha nunca mais retornou. O vulto, no entanto, toda noite vem vê-lo. Sem comer há dias, ele emagreceu muito, e passa todo tempo com os olhos voltados para um ponto qualquer do quarto. Só lembraram dele quando o mau cheiro já ultrapassava as paredes do apartamento. Quando enfim tamparam com cimento a gaveta mortuária, ninguém reparou que o caixão pesava como se carregasse dois corpos no lugar de um.