sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O professor de literatura

 “Para escrever uma história de horror”, o orientador explicava à aluna, “você deve em primeiro lugar conhecer o medo. Sentir o medo. Saber onde ele se encontra aí dentro, para então saber onde e como localizá-lo. E então poder transmiti-lo ao leitor.”

Enquanto explicava, o orientador ia olhando fixamente nos olhos da aluna. De modo tranquilo e insistente. Sem qualquer sinal de constrangimento. Ao pronunciar “aí dentro”, porém, seus olhos desceram até o decote e por ali ficaram. Ela percebeu, e fingiu que arfava. Com isso, mais estufou os seios aos olhos dele. Ele também percebeu e, sem qualquer demonstração de surpresa, continuou olhando.  Depois voltou-se novamente para ela.

“A maneira como você transmite a emoção é fundamental”, ele disse. “Não jogue tudo na cara do leitor de uma vez. Mostre um pouco aqui. Esconda ali. Sutilmente. Envolva-o primeiro. Depois é que você vai se deixando revelar.”

Como você está fazendo comigo, pensou a aluna. Exatamente assim.

O orientador era feio. Velho. Tinha idade para ser pai dela. Mas a aluna ficava nervosa sempre que estava com ele como estavam agora. Próximos demais. E ele fazia questão de ficar ainda mais próximo. Exalando perfume caro e hálito de cigarro. Usando a voz grave e rouca para jogar charme.

“Se você souber usar os artifícios que a literatura lhe dá, terá o leitor na sua mão. Poderá fazer com ele o que quiser. Ir aonde a sua imaginação desejar, que ele irá junto.”

Tinha fama de pegador. A aluna já ouvira os boatos sobre ele na faculdade. E agora, ambos sabiam, ela estava prestes a ser a próxima vítima.

“Se você puder desviar a atenção do leitor, faça. Deixe-o pensar que está lendo outra coisa. Não uma história de terror. Desenvolva os personagens. Conte um episódio engraçado, ou triste, ou erótico, mas não deixe de ser convincente. O espectador tem que gostar, ou do personagem ou da trama, e não perceber que você está apenas preparando o terreno para o bote.”

Nesse instante ele botou a mão sobre a perna dela.

“A melhor história é aquela que não dá aquilo que o leitor quer. Ou dá, mas não da forma que ele espera. Se o leitor pega uma história de terror para ler, ele vai estar esperando o terror. Medo. Tensão. Susto. Só que você dá outra coisa. Você faz ele baixar a guarda. E então você o aterroriza. Parece fácil. Mas não tem nada de fácil nisso. É preciso muita capacidade de manipulação. A maioria não tem.”

Ele agora acariciava abertamente a sua coxa, por cima do vestido. Com certeza havia percebido que ela tremia.

“Tenho uns livros interessantes em casa que você ia gostar de ler. Você vai entender bem como o autor manipula o leitor e o faz baixar a guarda para o que está por vir. Venha me visitar hoje. Você vem?”

“Vou.”

Às oito horas da noite ela estava saindo da aula de Literatura Comparada rumo à residência do orientador. Mal conseguira prestar atenção à aula. Ansiosa. Ao atravessar uma rua, porém, passou sem saber por um demônio perdido nas ruas. Uma criatura dessas que ninguém vê, mas que está sempre lá. Que, quando cisma com alguém, torna-se encosto, gruda-lhe nas costas e se delicia com o estado de nervos em que deixa a vítima. Um ser incômodo. Pois foi por uma criatura dessas que a aluna teve a infelicidade de passar.

Sentindo o cheiro de fêmea que emanava do meio das pernas da aluna, o demônio resolveu seguir-lhe os passos. Conhecia as mulheres. Sabia que era naquele estado, quando estavam inquietas e cheiravam daquele jeito, que ficavam mais frágeis, mais suscetíveis aos seus avanços. Ficavam atentadas.

E também ele ficava inquieto com o cheiro. Afoito como um cachorro, o demônio ia circulando em volta da aluna e cheirando-lhe as partes, quase metendo-lhe as narinas por debaixo do vestido. Se não estivesse tão excitada com o encontro com o orientador, ela teria percebido a presença. Teria sentido o calor da respiração do estranho aquecendo-lhe dentro das vestes. Teria medo, então, e fugiria. Mas nessas horas a capacidade de observação e raciocínio diminui, a sensibilidade chega às raias da dor e da vertigem, e mesmo o inimigo declarado torna-se irresistível objeto de desejo. Assim estava a aluna quando chegou ao edifício do orientador.

Na subida do elevador o demônio ia deixando-a tonta enquanto chupava-lhe o suco nas roupas íntimas. Foi cambaleando que ela chegou ao 13º andar e tocou a campainha.

Quando o orientador abriu a porta, porém, o demônio não gostou. Ao aspirar o ar que vinha do interior do apartamento, percebeu que tinha de ir embora. Que já havia um dono para o local, e que esse dono era muito maior e pior do que ele. Resmungando, o demoniozinho safado sequer esperou o elevador. Um último olhar para a aluna, e então desceu correndo pelas escadas e nunca mais chegou perto daquele edifício.

“Entra”, o orientador convidou.

“Oi”, a aluna estava nervosa quando entrou. Segurava uma das mãos na outra, e não encarava o orientador que afastara-se para ela entrar. Quando tentava sorrir, os lábios tremiam. Ela toda tremia.

“Quer beber alguma coisa?”

Recusou, encabulada, ainda que a boca estivesse seca. Lutava com todas as forças para parecer natural e espontânea, e tudo o que conseguia era agir como uma adolescente tímida. Na face, as bochechas queimando indicavam que ruborizava. Precisava falar. Ou ele acabaria expulsando-a do apartamento. Caminhou até a estante que ocupava toda uma parede da sala onde estavam.

“São seus todos esses livros?”

Não, idiota. São todos roubados. Antes ficasse calada, pensou. O orientador ia acabar perdendo o interesse que manifestara nela. Na certa ia mostrar o tal livro que prometera na faculdade, por pura educação, depois inventaria que precisava trabalhar e lhe mostraria a porta de saída. A noite seria um fiasco. Melhor ir embora logo e acabar de uma vez com aquela humilhação.

“Tenho mais no outro quarto, que uso como escritório”, ele falou, pacientemente. “O de que lhe falei está aqui.”

Segurando-lhe a cintura ele a trouxe até a ponta da estante. Posicionou-se às suas costas, enquanto ela olhava o livro sem conseguir sequer enxergar o título. Foi folheando o volume rapidamente até que as mãos dele chegaram a seu corpo. Uma na cintura, a outra no ombro. Apertando levemente, e puxando-a para trás. Trazendo-a ao encontro dele. Quando encostou de vez, a aluna duvidou que fosse conseguir ficar de pé. Ele já estava excitado. Ela sentiu. Movendo-se sempre suavemente, o orientador afastou-lhe os cabelos do pescoço e começou a beijar-lhe bem ali. Ela pensou que fosse desfalecer nos braços dele, e deixou a cabeça cair para trás, encontrando o ombro que a esperava. Sentiu o hálito de cigarro misturado com bebida. A língua serpenteando-lhe pelo pescoço. E logo veio a mão direita dele, sem cerimônia, apertar-lhe o seio. Nesse instante ela saiu do silêncio, e deixou escapar um gemido curto, de susto.

Ele então puxou-lhe o rosto e a beijou na boca. Demoradamente, em pé, junto à estante. Ela ainda segurava o livro em uma das mãos. Estavam agora de frente um para o outro, e a mão inquieta dele descia-lhe pelas costas e afastava o vestido. Ia apertando o que encontrava, procurando com o dedo por baixo dos tecidos, até encontrar o que queria. Já não havia suavidade. Ele enfiava o dedo nela com força, respirava fundo, e enfim começou a sussurrar em seu ouvido.

“Bruxa. Você é uma bruxa. Confesse.”

Ela não entendeu, mas estava tão excitada que faria o que ele mandasse. Mal conseguia falar, a excitação escorria pelas pernas e ela limitava-se a gemer concordando com tudo. E a mover os quadris junto com o dedo dele. Quando ele então tirou o dedo e a fez ajoelhar-se, ela obedeceu também. Viu quando ele desafivelou o cinto e abriu a calça. Viu o que havia ali dentro. Fez o que ele queria.

“Bruxa. Rameira. Vadia.”

Ele segurava-lhe pela cabeça. Forçava a entrada em sua boca. Obrigava-a a receber todo ele. Antes de terminar ordenou que ficasse de pé, e levou-a para o quarto. Atirou-a na cama, caindo já sem roupas por cima dela. A penetração foi rápida, barulhenta e dolorosa. O tempo todo ele a xingava, ofendia, em nada lembrando a elegância e a mansidão de antes.

Deu no ombro a primeira mordida. Ela reclamou. Pele muito branca, deixou marca. Ele não ouvia. Rosnava. Ela já estava vendo coisas, podia jurar que havia mais alguém na cama com eles. Não teve, no entanto, tempo para certificar-se. Bruscamente ele a virou de bruços e a penetrou atrás. Ela gritou. Ele puxou-lhe o cabelo, mordeu de novo, e de novo, deixou mais marcas, estava possesso.

“Vai arder no fogo do inferno.”

Quando ele começou a gozar, gritou como se estivesse a morrer. Ela gritou também. O orientador caiu por cima da aluna, e ela então emitiu um suspiro.

“Não acabou ainda. Vagabunda. Estamos só começando.”

Havia uma corda embaixo da cama. Bastou esticar o braço para pegá-la. Ela tentou reclamar, mas viu que o membro por que havia sido penetrada continuava duro, e a vontade de satisfazê-lo falou mais alto. Acabou deixando-se amarrar, as duas mãos e os dois pés, às pontas da cama. Quando achou que seria novamente penetrada, no entanto, o que lhe veio foi um violento tapa no rosto. Depois outro. Montado em cima dela, o orientador gargalhava e falava coisas que ela já não entendia. Falava em punição e castigo. Xingava-a de todos os nomes, como se a odiasse. A aluna chorava, pedia para parar, que a desamarrasse. Acabou sendo amordaçada. Depois de apanhar mais e mais, o orientador enfiou o rosto alucinado num dos seios e mordeu. Com toda força. A dor e o horror quase a fizeram desmaiar, principalmente quando ele ergueu a cabeça à sua frente com a boca cheia de sangue e cuspiu o mamilo que arrancara. A aluna esperneou e gritou um grito abafado. Naquele instante teve certeza de que iria morrer. Ele não permitiria que saísse com vida daquele apartamento. Gritou com toda força, lutando contra as cordas, até tombar exausta.

“Fica acordada”, ele disse, limpando com as costas da mão o sangue na boca. “Tem mais pra você.”

Levantando-se de cima dela, o orientador saiu do quarto. No mais profundo e completo pânico, a aluna procurou algo que a libertasse das cordas, tentou quebrar a cama, tentou fazer barulho, tudo em vão. Logo ele estava de volta. Trazia algo na mão que ela, a vista embaçada de suor e choro, só foi reconhecer quando ele chegou mais perto e destampou. Era álcool. Gargalhando, ele virou o frasco sobre a vagina dela e derramou ali todo o conteúdo. Ela sentiu arder tanto a pele já irritada que mentalmente pediu que morresse. Pediu que tudo acabasse ali mesmo. De repente imagens de seus pais, de seus amigos e de todos aqueles que conhecia explodiram na sua mente, e ela soube que nunca mais veria nenhum deles. Não teria, porém, mais tempo para pensar. O orientador trazia outra coisa na mão, que estava agora abrindo. Era uma caixa de fósforos. Ele estava eufórico quando riscou o primeiro palito e jogou-o, aceso, sobre o álcool derramado.

Estava em chamas. A vagina dela estava em chamas. A aluna não conseguiu olhar, estava enlouquecendo de dor. Rasgando-se de dor. Diante da cama o orientador gritava algum tipo de oração diabólica, e a visão dele de braços erguidos, as chamas e o enorme vulto a tudo acompanhando foi a última visão que a aluna teria. Vitimada por uma parada cardíaca, ela enfim parou de debater-se e morreu. O orientador, em êxtase, avançaria então para cima dela com uma enorme faca e retirando, desajeitadamente, pedaços de sua carne, terminaria por devorá-la.

*

Passados oito meses do desaparecimento da aluna, seus pais não perderam a esperança de encontrá-la e insistem em sua procura. Débora Gonçalves Lessa tinha 23 anos quando foi vista pela última vez saindo da faculdade. Morava com os pais e o irmão num apartamento no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Estudava literatura e pretendia ser professora quando se formasse. Era uma jovem tímida, carinhosa e querida. Não era dada a excessos, não fumava, bebia pouco. Na faculdade os colegas fizeram-lhe uma homenagem. Todos os professores participaram.