terça-feira, 19 de outubro de 2010

Uma noite com Paloma

De uma hora para outra ela havia esquecido tudo. Quem era, como se chamava, onde morava, quantos anos tinha, em que se formara, qual era o seu salário, o que usava por baixo do vestido. E, principalmente, o que viera fazer em meu apartamento. As lágrimas ainda enlameavam o rosto que eu considerava o mais lindo de todos, mas agora não havia mais um motivo aparente para que descessem dos olhos. Ela não sabia por que estava chorando, e olhava para mim como uma criança indefesa e perdida.

“Não se lembra de nada?”, perguntei. “Não se lembra de mim?”

Ela não lembrava. Nada lhe era familiar. Caíra num mundo desconhecido e eu era o anfitrião que a estava recebendo. Um mundo novo, onde o namorado que a abandonara não existia, e eu não era apenas o amigo fiel porém incapaz de despertar qualquer tipo de interesse mais profundo.

E então me dei conta de que não precisava mais ser apenas o amigo.

“Somos namorados”, falei, segurando-lhe as mãos. “Nos amamos. Estamos namorando há anos. Você não pode ter esquecido tudo o que passamos juntos.”

Contei-lhe então todos os momentos inesquecíveis que teríamos vivido. Descrevi nosso primeiro encontro sob a chuva. Nosso primeiro beijo. Os obstáculos que enfrentamos por não contar com a aprovação de seu pai. A vez em que ela quase se afogou na praia de Copacabana e eu salvei-lhe a vida. Ela ouvia e mais assustada ficava por não lembrar. Por não conseguir se ver dentro das lembranças que eu narrava. Cheguei a ficar com pena dela. Mas não voltei atrás.

“Você precisa lembrar”, insisti. “Procure fazer um esforço, meu amor. Olhe para mim. Não reconhece o meu toque, não reconhece o meu cheiro?”

E enquanto perguntava eu ia tocando-a, segurando-lhe as mãos, abraçando-a. Procurei não dar-lhe tempo para raciocínio, falando sem parar, aumentando-lhe a confusão e abrindo caminho para o beijo que não tardou. Que boca maravilhosa. Não sei se alguém  conseguiu alguma vez descrever tão bem a realização de um sonho, e certamente não serei eu a conseguir. Em todo caso, acredite, eu estava no mais perfeito êxtase quando nossos lábios se tocaram e minha língua começou a navegar pela região até então distante e cobiçada de sua boca. Ela se deixou beijar sem, no entanto, contribuir efetivamente. Mas aos poucos foi se entregando, e logo suspirava comigo quando alcancei a pele branca do pescoço e ali fui aumentando a intensidade de meus beijos. Paralelamente apertava-lhe a cintura, os braços, e não tardou para que minha mão lhe alcançasse o seio. Ela estava ofegante. Tentara evitar que a minha falta de pudor lhe descesse a alça do vestido, mas eu não apenas conseguira desnudar-lhe o seio como agora acariciava com a palma da mão o mamilo enrijecido.

Em minutos estávamos em meu quarto. Ela estava nua, embaixo de mim, e enquanto a penetrava eu perguntava-lhe no ouvido se ela se lembrava disso. Ela gritava que sim. Depois, sem parar de entrar e sair de dentro dela, enfiava-lhe o dedo atrás e perguntava, novamente, se ela lembrava. Sim, sim, era a resposta. Mesmo sem nunca ter feito amor comigo, ela lembrava de tudo. Aquilo foi o suficiente para me convencer de que, no fundo, sempre estivemos juntos. Se não nessa, em alguma outra vida paralela onde as coisas eram como deveriam realmente ser. Quando finalmente terminamos, ela virou-se para o lado, exausta, e adormeceu. Eu fiquei acordado, enternecido, admirando-lhe o sono. Era o mais feliz dos homens.

Seria, no entanto, retirado de meu estado de felicidade pelo toque do telefone. A fim de não fazer barulho, fui atender na sala. Era Tiago, o sujeito que, além de meu amigo, também era o ex-namorado da mulher que dormia em minha cama. Parecia arrasado.

“Oi, Tiago.”

“Juliano, você sabe para onde a Paloma foi?”

Sabia, sim. Foi para as nuvens. Eu a levei.

“Não, Tiago. Aconteceu alguma coisa?”

“A gente teve uma briga. Eu terminei com ela. Ela ficou muito abalada, tô preocupado, cara. Ela pode fazer alguma besteira. Ela não te procurou?”

“Não. Mas pode deixar que eu te aviso. Um abraço, cara.”

“Valeu, amigo.”

Agora voltamos à nossa programação normal, pensei, enquanto retornava ao quarto.

Paloma continuava estirada em minha cama, bela adormecida mergulhada nua em seus sonhos. Sem que ela despertasse tomei-lhe um dos pés e beijei-o delicadamente várias vezes, em toda a sua extensão. Beijava o dorso, os dedos, a sola, e nessa situação de abuso terminei por ver aceso novamente o desejo. Segurando pelo calcanhar o tão delicado pé de minha amada, comecei a me masturbar e não parei antes de ejacular fartamente em seus dedos. Ela continuava linda, fada, santa, mesmo com a profanação de sua pele por meu sêmen. Eu a olhava e esperava que, ao acordar, Paloma permanecesse amnésica. Mas estava preparado para o caso de isso não acontecer. Meu plano B seria dizer, simplesmente, com a cara mais assustada, que ela viera até meu apartamento após terminar com Tiago e, visivelmente bêbada e chorando, me seduzira e eu não resisti. Aconteceu. Não foi antecipado e nem era culpa de ninguém. Ela talvez ficasse chocada, mas entenderia. Não havia o que fazer. O ser humano era dado a comportamentos cuja explicação muitas vezes se perdia no meio das luzes e das trevas da alma. Por que então pedir razões aos gestos da alma, se a própria alma as dispensava?

Naquele instante o telefone tocou outra vez, e voltei para a sala para atendê-lo. Era o Tiago de novo.

“Cara, tem certeza de que ela não te procurou? Ela não te ligou?”

“Não.”

“Eu tô ligando pra casa dela e ninguém atende. Tô muito preocupado. Acho que aconteceu alguma coisa.”

“Por que vocês brigaram, afinal?”

“Ela tem um problema, mas não importa. A gente precisa encontrar a Paloma.”

A gente?

“Que problema ela tem?”

“Deixa pra lá. A gente precisa encontrar.”

“Que problema ela tem?”

“Ela tem umas perturbações. Faz umas coisas estranhas. Eu falei pra ela se tratar. Pra procurar um médico. Um pai de santo. Sei lá.”

“Peraí. Me explica isso direito. O que ela faz? Pra que ela precisa de pai de santo?”

“Nada. Esquece. Se ela te procurar, me avisa.”

“Diz logo o que a Paloma tem, porra.”

Eu já estava impaciente com Tiago, quando então ouvi um barulho vindo do quarto.

“Tiago, preciso desligar. Me liga daqui a cinco minutos. Liga pro meu celular.”

“Tá legal.”

Quando estava voltando para o quarto, tive a sensação de que iria me arrepender de ter mentido para Paloma, feito amor com ela e ejaculado em seu pé. E de fato o arrependimento começou ao ver a cama vazia. Paloma não estava mais lá. De alguma forma conseguira sair do quarto, passar por mim enquanto eu falava ao telefone com seu ex-namorado e sair do apartamento, deixando a porta aberta e um absurdo e escandaloso rastro de fezes pelo chão. O rastro seguia pela escada, por onde ela certamente havia descido, nua, sabe-se lá para onde e para quê. Olhando os degraus que se estendiam para o andar inferior, pensei em deixar que ela se virasse. Em não me envolver. Em voltar para casa e limpar o chão. Mas acabei descendo também, gritando o nome dela enquanto ouvia, bem longe, os pés descalços pisando ligeiros o mármore dos degraus. Aquilo não acabaria bem. Uma mulher correndo nua e toda cagada no meio da noite era caso de polícia. Eu deveria saber que ninguém fica muito tempo no paraíso com a mulher amada. Que lá embaixo as chamas do inferno me aguardavam para encerrar da pior maneira possível os momentos mais felizes de minha vida. Eu deveria saber.

Ao chegar na portaria estava ofegante. Paloma estivera por ali e ganhara a rua, diziam as pegadas sujas de merda que ela deixara. Tomei o mesmo caminho e, na bifurcação entre um beco escuro e a avenida, imaginei que ela tivesse entrado no beco escuro. Era o que eu faria, se estivesse correndo pelado pela rua. E foi a alternativa correta. Paloma estava lá, de pé, na sombra. Imóvel e de frente para um muro, como que aguardando alguma coisa sair dali. Fui me aproximando lentamente e repetindo seu nome com suavidade para não assustá-la. Ela não se mexeu nem falou, mas deixou-me chegar perto. Estava fedendo, mas mesmo assim eu a abracei.

“Está tudo bem, Paloma. Estou aqui com você.”

Mas não estava nada bem. Quando percebi no muro as sombras projetadas de um ponto atrás de mim, me virei rapidamente para confirmar que não estávamos sozinhos. Havia dois homens na entrada do beco, sujos, mal vestidos e possivelmente criminosos. Estavam parados, mas logo caminhavam em nossa direção.

“Não disse que tinha uma mulher pelada correndo pela rua”, falou um deles. “Olha ela aí.”

“Peladinha”, concordou o outro.

Tentei argumentar. Disse aos dois que minha namorada estava doente, e que eu a estava levando para casa. Tentei apelar para a compaixão deles. Mas não adiantou. Levei uma surra dos dois e tive de assistir caído no chão enquanto Paloma era violentada. Violentada, sim. Quem visse a cena poderia até pensar que ela estava gostando, mas aquela que abria as pernas e gritava para que enfiassem tudo não era ela. Não a minha Paloma. Não era, eu sabia, a mulher da minha vida abrindo as pernas para os criminosos sujos. Não o meu amor. Quando o celular tocou de novo àquela hora, tive dificuldade em pegá-lo no bolso e atender. Mas não foi difícil imaginar quem estava do outro lado da linha.

“Oi, Tiago.”

“E aí, cara? Alguma notícia da Paloma? Ela te procurou?”

“Procurou.”

“Ela te procurou? E como ela está?”

Naquele instante, pude perceber que mais homens imundos e sem ocupação apareciam no beco. Todos rodeavam Paloma, como que esperando a vez.

“Mais ou menos”, respondi.

“Cara, eu precisava conversar com ela. Precisava dizer que apesar de tudo eu gosto dela. Mas que, com esse problema que ela tem, não dá. Não dá.”

“Ela não vai te ouvir agora.”

“Fala pra ela, cara. Você é meu amigo. Diz pra ela.”

“Vou tentar. Tchau.”

Não sei até que horas da madrugada tive de ficar olhando o aterrador e repetitivo espetáculo dos homens cercando Paloma, abaixando as calças e entrando em suas intimidades. Houve um momento em que, vencido pelo cansaço, adormeci. Meus olhos só iriam se abrir com o céu já claro, e pude então ver que os mendigos estupradores haviam ido embora e deixado minha mulher em paz. Paloma estava deitada na sarjeta, imunda, violada e inconsciente, e com o corpo cheio de dores eu fui até ela. Coloquei-a em pé. Ajudei-a a caminhar. No caminho para minha casa, passamos por uma igreja e ela pediu para ficar lá dentro. E foi nesse momento que reconheci, emocionado, a Paloma que eu amava. Era o meu amor falando de novo, o meu amor havia voltado para mim. Tratei de atender o seu pedido e, influenciado pela religiosidade do lugar, comovido por reencontrar a mulher da minha vida, pedi Paloma em casamento. Confessei que sempre a amara. Admiti o quanto sofria vendo-a nos braços de Tiago, o quanto sonhava com o dia inalcançável em que estaríamos juntos, o quanto queria sorrir quando ela sorria e o quanto queria chorar quando ela chorava. Confessei que precisava dela, como precisava da esperança para acordar todas as manhãs e acreditar que seria capaz de sobreviver a mais um dia sem ela. Precisava dela como precisava de fé, como precisava de alguma coisa que me desse sentido nessa vida tão infeliz. Enquanto falava as lágrimas desciam-me pelos olhos e eu segurava as mãos de Paloma, implorando que me amasse como esposa e prometendo fazê-la a mais feliz de todas as mulheres.

Paloma, no entanto, recusaria o meu pedido e tiraria, de dentro das minhas, as suas mãos. Antes que eu pudesse argumentar, insistir para que ela pensasse no assunto, porém, um padre veio ter conosco e, cobrindo-lhe a nudez, levou Paloma para dentro. Sozinho na igreja, atendi o celular que tocou de novo. E, de novo, era o Tiago.

“Ei, cara. Você falou com a Paloma? Deu o meu recado?”

Nesse momento me levantei de onde estava sentado e fui até a pia batismal. Largando lá dentro o celular, deixei que a voz de Tiago se afogasse na água benta e fui para casa chorar minhas mágoas.