terça-feira, 26 de outubro de 2010

Além

“Esse papo de disco de vinil rodado ao contrário de novo?”

Meu amigo se chamava Eric. Igual ao Clapton, ele dizia desde os tempos de Colégio Pedro II. Já estávamos formados e ele continuava dizendo aquilo quando apresentado a alguém. Se era um idiota, então eu também era, já que andava com ele. A questão é que ele jamais perdera alguns costumes da adolescência. Um deles era encontrar em tudo manifestações sobrenaturais.

“Se não acredita, então ouve.”

Era um disco da Legião Urbana. Logo a minha banda favorita. Pois Eric estava com o bom e velho LP no toca-discos e botou para tocar, rodando porém o disco ao contrário.

“Escuta só.”

Escutei. Não ouvi, no entanto, nenhuma mensagem satânica, e disse isso a ele.

“Escuta de novo”, ele insistiu.

Escutei de novo, e nada.

“Não ouviu a expressão Oxalá Belzebu?”

Ele tocou a porra do disco dez vezes, e em nenhuma delas eu ouvi oxalá belzebu. Fui acusado então de estar inconscientemente bloqueando meus ouvidos porque gostava do Renato Russo. Argumentei que ele, Eric, é que estava ouvindo o que queria ouvir, porque era um fanático paranóico sugestionável. E ficamos por isso mesmo. Achei melhor, então, mudar de assunto.

“O que você acha que atingiu a cabeça do Serra?”

“Bem lembrado. Deixa eu te mostrar uma coisa.”

Ele então mostrou no computador o vídeo do incidente em Campo Grande e o momento em que o candidato à Presidência da República José Serra teve a cabeça atingida por alguma coisa durante uma manifestação. Até aí nada demais. Mas Eric não podia ter deixado de descobrir no vídeo alguma coisa que ninguém havia percebido.

“Tá vendo isso? Aqui, no meio da multidão.”

Como eu nada visse, ele então selecionou um trecho da imagem na tela, ampliou e melhorou a resolução para me mostrar aquilo de que tinha certeza ser o rosto de uma figura diabólica abrindo-se num sorriso.

“Está vendo agora?”

“Não.”

“Porra. Esses óculos servem pra quê?”

Na volta para casa, enquanto caminhava contra o vento numa noite que prometia chuva, me dei conta de que invejava a imaginação fértil de Eric. Sua crença quase obsessiva no sobrenatural era a maneira dele reagir à secura, à tristeza, à covardia e à falta de sentido de que é feita a nossa realidade. Enquanto estava ocupando-se com tanto afinco em correr atrás de fantasmas, não via o quanto estamos sozinhos nessa existência, e o quanto somos incapazes de fazer alguma coisa concreta para reverter essa situação. Por isso nos refugiamos em templos. Por isso acendemos velas. Por isso adotamos um cachorro. Por isso casamos com quem não temos afinidade, o que dirá amor.

Foi com esse espírito que cheguei em casa e me atirei na cama. Pesado, triste e sozinho, sequer acendi a luz. Mas acabei deixando escapar em voz alta um apelo.

“Sobrenatural. Se você existe, esse é um bom momento para mostrar isso.”

Esperava qualquer coisa. Qualquer uma. Um ruído. Um objeto caindo. Uma trovoada. Qualquer som ou visão estranha, que viesse do nada e sem explicações. Nada aconteceu, no entanto. Se existia mesmo, o sobrenatural deveria estar dormindo. Com isso eu acabaria me rendendo ao desânimo e adormecendo também.

Ao acordar, a enfermeira já estava diante da cama. Parecia surpresa.

“O senhor dormiu bastante hoje.”

“Dormi? Tive sonhos curiosos. Lembranças da juventude.”

“Alguma antiga namorada?”

“Não, um amigo. Um velho amigo, já falecido. Se gabava de ter nome de músico. Engraçado que, no sonho, lembrei até de um sujeito que foi candidato à presidência. José Serra. Lembra dele?”

“Não, senhor.”

“Não é do seu tempo. Também já morreu.”

“O senhor precisa sonhar com gente viva.”

“Pois é, minha filha. Mas a única pessoa viva que conheço atualmente é você. Posso sonhar com você?”

“Depende do que o senhor vai sonhar.”

“Por que será que sonhei com essas pessoas? Estarei para morrer também?”

“Cruz credo, vire essa boca pra lá.”

“Preciso ir ao banheiro. Você me ajuda?”

“Ajudo.”

Chamava-se Cila. Na verdade, Priscila. Eu nunca concordei com o nome dela abreviado. Muito curto, para uma mulher tão grande. Mas era assim que ela queria. Cila. Então eu a chamava de Cila.

Perdera o marido para o câncer aos trinta anos. E perdera o filho, dois anos depois, para a violência urbana. Com cinquenta anos, me encontrou. Cuidava de mim como se eu fosse o pai dela. Não gostava de sair, não tinha vida social. Vivia para fazer de meus últimos dias uma coisa prazerosa. E estava conseguindo.

“Não gosto do senhor aí dentro com a porta fechada. Pode deixar aberta. Juro que não vou olhar.”

Era a mesma coisa toda vez que eu ia ao banheiro. O medo dela de que eu caísse e morresse. Coitada, não queria perder mais um. Mas e se eu caísse, e morresse, e daí? Minha vida não era tão boa assim para que eu quisesse segurá-la por mais tempo. Em todo o caso, naquela manhã pude terminar ainda vivo o meu xixi, lavar as mãos e abrir a porta para Cila.

“Olha”, mostrei a ela o vaso sanitário. “Tampa levantada.”

“Muito bem.”

Cila então me ajudou a voltar para o quarto. Passavam os dias, e caminhar e ficar de pé eram atividades que exigiam um esforço físico cada vez maior. Quando enfim cheguei até a cama e pude me deitar, estava ofegante.

“O senhor está bem?”

“Cansado.”

Havia preocupação nos olhos dela. Curioso como a idade muda os objetos de nossas aflições. Quando jovem, perturbava-me a possibilidade de não existir nada depois da morte. De que o fim fosse isso mesmo, apenas fim. Hoje me encontro a um passo dele e não estou dando a mínima.

“Talvez eu durma mais um pouco. Pode ir, Cila.”

“Vou ficar aqui.”

Segurei em suas mãos e sorri. Ela parecia emocionada. Talvez achando que eu estivesse me despedindo. Mas só estava agradecendo. Dizendo sem falar que ela era a pessoa mais gentil que eu havia conhecido em toda a minha vida. Então fechei os olhos.

Ao abri-los o apartamento estava vazio e diferente. Mais cinza. Sem cor. E sem nenhum sinal de Cila. Quando saí da cama, não me dei conta de que consegui fazê-lo sem ajuda. Percorri todo o imóvel e vi que estava sozinho em casa. E estava triste. Profundamente triste, com uma tristeza que sabia que não iria passar. Nunca.

Na janela, abri a cortina e vi as pessoas lá fora, na rua. Vivendo. Tive medo de todas elas. Não sabia explicar a razão, mas temê-las me pareceu algo natural e lógico. Por isso não fiz mais perguntas. A partir daquele momento eu me limitaria a olhar, de longe, coberto dessa silenciosa tristeza, o movimento daquelas criaturas distantes que respiravam, transpiravam e às vezes conseguiam sorrir.