sábado, 13 de novembro de 2010

A criança (I)

Santiago sentou e pôs-se a escrever.

“Senhor, pela graça alcançada eu agradeço. Pela saúde, pela cura e pela luz, eu agradeço. Agradeço pelos dias de sol, por meus filhos e por minha esposa. Agradeço e reafirmo que é minha maior alegria poder servi-Lo agora e sempre.”

Precisou tirar os óculos para limpar uma das lentes que embaçara. Quando os recolocou, ficou assombrado com o que viu escrito na folha de papel.

“Eu sou a treva. Eu trago a dor. Eu conheço você. Eu quero a carne, o sangue e a alma dos seus filhos.”

Não conseguiu acreditar no que acabara de ler. Precisou ler de novo. E de novo. Continuaria relendo indefinidamente, se a esposa não entrasse no quarto que usavam como escritório.

“Escrevendo?”, ela perguntou. “Quer que eu traga um cafezinho?”

Com as duas mãos ele escondeu o texto. Tentou agir naturalmente.

“Não”, respondeu. “Obrigado, minha querida.”

Tentou também sorrir. Lutou para que o canto da boca não tremesse. Ela colocou a mão sobre o ombro dele, demonstrando carinho, e deixou o escritório. Santiago leu de novo o texto diabólico, e passou a mão sobre o papel. Não estava enlouquecendo.

Foi até a sala. O filho mais velho, de cinco anos, assistia televisão. O mais novo estava no quarto, no berço, em paz. Santiago voltou para o escritório com um pensamento na cabeça. Sentou-se de novo à mesa e, depois de olhar fixamente a mensagem que não escrevera, tomou de outra folha. Desta vez, escreveu apenas uma palavra.

“Fé.”

E ficou olhando a folha. Nada aconteceu. A palavra permaneceu a mesma durante todo o tempo. No intervalo em que fechou os olhos e suspirou, no entanto, alguma coisa acontecera. Não era mais “fé” o que estava escrito no papel sobre a mesa. Santiago levou as mãos à cabeça, sem conseguir compreender. Era outra coisa. Com a sua mesma letra.

“Sangue.”

A palavra estava ali. Para quem a quisesse ver. Como se fruto de uma mente perversa, exibicionista. Santiago sentiu medo. Medo dos próprios pensamentos que não controlava, da própria fragilidade. O demônio avança sobre os fracos, já havia lhe dito o Pastor. Santiago era fraco. Mas não seria desta vez. Não quando parecia haver uma ameaça sobre sua família. Não. Pegou o telefone e ligou para o Pastor. Precisava falar, disse a ele. Pessoalmente. Agora.

Quando desligou o telefone, foi para o quarto. Estava vestindo-se para sair, quando a esposa entrou.

“Aonde vai?”

“Preciso falar com o Pastor”, tentou de novo sorrir. “Não demoro. As crianças estão bem?”

“Claro. Como poderiam não estar?”

Santiago beijou a esposa e saiu. A igreja ficava a duas quadras apenas de casa, iria a pé. Iria a pé e raciocinaria. Desceu sozinho os sete andares de elevador e, ao chegar na portaria, ouviu o rumor que vinha da rua.

“O que aconteceu?”, perguntou ao porteiro.

“Acidente. Alguém enfiou o carro debaixo do ônibus.”

O porteiro não sabia se havia feridos. Não podia deixar o serviço. Embora ficasse na direção oposta da igreja, Santiago foi até o acidente. Atravessou a rua, virou a esquina. Seguiu o fluxo da multidão. E encontrou o ônibus da linha 433 com a lateral parecendo engolir um Palio prateado. Havia mortos. A ambulância ainda não chegara, e as pessoas aproveitavam para fotografar os corpos no asfalto com seus celulares. Sem saber por que, Santiago tirou do bolso o celular e imitou a morbidez da multidão. Fotografou várias vezes, os destroços, os corpos, as manchas de sangue, e então afastou-se para conferir as fotos. Abriu no aparelho o arquivo onde estavam as imagens e descobriu que um novo susto o aguardava. Só havia fotos de seu próprio rosto. Nenhuma do acidente. Apenas o seu rosto, no lugar onde deveria estar a morte. Santiago passou a andar de um lado para o outro da calçada, confuso, com medo. Entrou então num botequim. Pegou um guardanapo e pediu ao balconista uma caneta. Com a mão trêmula, escreveu no guardanapo.

“Morte.”

E fechou os olhos. Esperou. Quando abriu-os, não se surpreendeu por encontrar outra palavra. O que o assustou foi a palavra encontrada.

“Santiago.”

Estava enlouquecendo. Ou isso, ou era um ataque. Estava sendo atacado. Algo estava, de qualquer forma, para acontecer. Já acontecia. Dando meia volta, Santiago caminhou às pressas na direção da igreja.

*


O bebê acordara chorando, e a mãe foi até o quarto. O filho mais velho foi junto.

“O que ele tem?”, perguntou.

“Precisa trocar a fralda”, respondeu a mãe, depois de examinar o bebê. “Pega uma nova pra mim?”

O filho mais velho pegou. Ficou olhando atentamente enquanto a mãe tirava a fralda molhada e limpava o bebê, antes de colocar a nova.

“Vai olhando mesmo”, a mãe falou. “Um dia você é quem vai estar fazendo isso.”

“Eu não. Minha mulher é que vai fazer.”

“Que é isso?”, a mãe riu. “Homem também cuida de criança.”

“E por que é só você que cuida dele? Por que o papai não troca a fralda e limpa o meu irmão?”

“Porque o papai tá ocupado. Mas ele limpou muito o seu xixi e o seu cocô, sabia?”

“Limpou nada.”

“Limpou sim.”

Quando terminou, a mãe pegou o bebê e ficou passeando pelo quarto com ele nos braços. O mais velho foi jogar fora a fralda suja na lata de lixo que ficava na cozinha, e na volta viu a mãe recolocando o menino no berço.

“Está frio aqui”, reclamou ela.

Depois de cobrir o bebê e certificar-se de que estava tudo bem, a mãe saiu do quarto. O outro filho ficou, olhando para dentro do berço. O bebê não chorava, mas também não estava dormindo. Tinha os olhos abertos. Sem saber por quê, o irmão mais velho sentiu medo e saiu do quarto.

*

A mão de Santiago tremia, enquanto ele tentava escrever no papel que o Pastor lhe entregara. Mas acabou conseguindo.

“Deus é nosso Senhor e está em todos os lugares.”

Santiago olhou para o Pastor. Depois olhou de novo para o papel. A frase permanecia a mesma.

“Você está preocupado com alguma coisa?”, perguntou o Pastor. “Está tudo bem em casa, no trabalho?”

Santiago não conseguiu falar. Não compreendia. Sentia-se ao mesmo tempo confuso e desanimado. O Pastor estava achando que não passava de loucura dele. Santiago temeu que ele estivesse certo.

“Desculpe tomar o seu tempo.”

“Não tem por que se desculpar, Santiago. Todo mundo tem o seu momento de cansaço. De exaustão. Todo mundo precisa de um descanso, às vezes. Lembra Eclesiastes, 4:6: ‘Melhor é a mão cheia com descanso do que ambas as mãos cheias com trabalho, e aflição de espírito’. Venha, vamos tomar um café.”

Santiago estava envergonhado. Quis recusar, mas não poderia ser indelicado com o Pastor, que passara o braço por seu ombro e o levava até a cantina da igreja.

Sobre a mesa, o pedaço esquecido de papel trazia agora outra mensagem.

“Trago a danação e o inferno para o coração de todos os homens. Uma das crianças já é minha.”

(Continua.)