quinta-feira, 31 de julho de 2014

Amor



Quando chegou o pacote com o nome da outra no remetente, ele ficou preocupado.

Sorte dele, que a esposa não estava em casa.

Abriu. Estava embalado elegantemente, com detalhes vermelhos e perfumado. Quem embalara, o fizera com amor. Ele até abriu com cuidado, para não rasgar.

Dentro, uma surpresa. Havia pelos pubianos dentro da caixinha. Pentelhos. Junto, um bilhete.

“Olha como eu te amo, meu amor. Quem mais faria isso por você?”

Tratou de jogar tudo fora. Não tocou no assunto com a esposa.

No dia seguinte, outro pacote. Tão trabalhado quanto o primeiro. Desta vez, no entanto, além da surpresa ele levou um susto.

Havia um dente dentro da caixa. Um dente ensanguentado.

E outro bilhete.

“Estou lhe enviando os seus pertences, meu amor. Tudo meu é seu. Tudo meu é propriedade sua. O que você quer de mim? Os meus cabelos? São seus. Os meus seios? São seus também. Vou mandar tudo para você. O que você deseja? Diga. Eu dou.”

Viu que ela não ia parar. Antes que começasse a enviar dedos e orelhas, foi até a casa dela.

“Pare com isso”, ordenou. “Não me procure mais. Não me envie mais nada. Me esqueça.”

Ela não falou. Parecia feliz. E, para mostrar a sua felicidade, sorriu um sorriso faltando o dente da frente. Um sorriso aleijado.

Depois, sem nada dizer, ela tirou a roupa. Abandonou para o lado as vestes e se prostrou aos pés dele, de quatro, entregue em sacrifício. Então se virou devagar, ainda de quatro, na direção oposta.

Ele olhou as ancas brancas na sua frente. A mais preciosa oferenda. E se serviu.

A esposa, enquanto isso, sofria um acidente de carro ao retornar para casa.



quarta-feira, 30 de julho de 2014

Sonhar



Acordou sozinho na cama. Chamou o nome dela.

Acordar era se sentir perdido sempre.

Estendeu o braço para o lado e encontrou o bilhete que ela deixou:

“Fiquei do outro lado. No sonho.”

Enquanto a imagem se desvanecia, ele acordava de vez.

A saudade em milhões de cacos de vidro se enterrava em sua carne.

*

Foram precisos 50 anos para sonhar com ela outra vez.

Ela não envelhecera. Tampouco se importava com a idade dele.

Desta vez ele não acordou.



terça-feira, 29 de julho de 2014

O bar no fim do mundo



“O que uma mulher como você procura num lugar como este?”

O bar parecia ter sido construído no lugar exato da indicação do letreiro à entrada. Talvez não no fim do mundo. Talvez outra palavra, de baixo calão, com duas letras, descrevesse melhor o lugar e a região.

A mulher respondeu sem olhar para o homem:

“Evidentemente, procuro sexo.”

O homem a levou então para os fundos do bar. Passado algum tempo, a mulher voltou sozinha.

Veio outro homem. Nova corte, e foram os dois para os fundos do bar. Só ela retornou.

A cena se repetiria algumas vezes ainda, no decorrer da noite. Quando a mulher afinal se satisfez, foi embora.

Só foram dar conta dos corpos mutilados nos fundos do bar quando o cheiro se tornou insuportável.



segunda-feira, 28 de julho de 2014

Moradores



Ela nunca saía de casa.

Às vezes alguém via o rosto pálido na janela do segundo andar. Mas não havia curiosidade suficiente para querer saber mais da mulher lá dentro.

A vida era muito curta para se preocupar com gente louca.

Quando invadi a casa, era criança. Entrei pelos fundos. Me esgueirei pelos cômodos empoeirados como um rato.

A casa estava velha, suja e entregue à própria sorte.

O segundo andar não era diferente. A casa cheirava mal. Da porta do quarto vi a mulher sentada.

Então descobri que ela não era a única morando ali.

Tentei fugir, mas era tarde demais.

Que pena.

Eu nunca mais saí daqui.

A vida é muito longa para esperar passar.



domingo, 27 de julho de 2014

Sombras

"Pela primeira vez, o simples fato de estar de pé no meio da rua causou-me medo, quase horror, e passei a olhar com desconfiança para cada esquina, cada entrada, cada recanto onde uma pessoa pudesse observar outra sem ser percebida. Olhava as paredes e demais superfícies esperando ver, a qualquer instante, o movimento de sombras deformadas e agressivas, prestes a pularem de seu mundo para retomar o que haviam começado."

(Trecho do romance O ADVERSÁRIO)





sexta-feira, 25 de julho de 2014

Além



“Despedidas são sempre dolorosas.”

Estava falando sozinho. Lá fora, o mundo confirmava que, como ela, poderia muito bem passar sem ele.

Com o cano apoiado na cabeça, ele puxou o gatilho e caiu logo depois.

A cara metida na poça do próprio sangue.

Quando se levantou, estava tudo embaçado. Foi até a janela, e as ruas estavam vazias.

Foi até a rua, e ele mesmo estava vazio. Andou de um lado para o outro, afugentando moscas que o perseguiam. Pisou sem querer em cocô de cachorro. Na banca de jornal, todas as publicações vinham em branco. Entrou numa lan house vazia. Não havia conexão.

Por toda parte, era possível ouvir o saxofone do Kenny G.