segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Viuvo



Estava bêbado. Negava, mas estava. Também negava estar sofrendo, mas sofria.

A janela convidava.

Ele lembrou quando conheceu a mulher, no balcão da loja. Quando retornou no dia seguinte, e nos demais, só para vê-la. Lembrou a cara que ela fez, quando recebeu as flores que ele comprou. A primeira vez que se deram as mãos, depois do expediente, quando ele a levou em casa, e o primeiro beijo, uma semana depois. Lembrou-se dela na cama, naquela mesma cama onde ele estava sentado, bêbado (isso ele negava). Lembrou-se dela avisando antes: É minha primeira vez. Lembrou-se da vontade de dizer que era a primeira vez dele, também, só para agradá-la. E da felicidade que acompanhava o amor. Lembrou-se das horas contadas no trabalho, e de como saía às pressas para ir ao encontro daquela que amava. Lembrou-se do dia em que ela lhe apresentara os pais. Lembrou-se dos planos para o futuro, lembrou-se do pedido e lembrou-se da resposta. Lembrou-se do padre, e do coração que não cabia mais no peito, de tanto amor. Lembrou-se das juras: para sempre? Para sempre. Para todo o sempre.

Então se lembrou da nuvem negra que veio se acomodar sobre a vida dele. Lembrou-se da figura estranha que ela disse que a acompanhara na rua, e que passara a enxergar por toda parte. Lembrou-se do cheiro de enxofre enquanto ele trabalhava no encanamento da casa, e do que vira ao entrar no quarto.

Então não quis mais lembrar.

Admitiu que estava bêbado. Estava, sim.


Olhou para a janela, que convidava para ver o amanhecer de perto. Depois de refletir, à maneira dos bêbados, engoliu os últimos cinco goles do que tinha dentro da garrafa. E aceitou o convite.