segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Praça




A mulher muito magra, muito velha, vestindo farrapos cinzentos, perguntou ao homem sentado sozinho no banco da praça.

“Você tem um animal de estimação em casa?

 “Não.” 

“Crianças? Filhos?” 

“Não.” 

“Um grande amor?” 

“Não tenho.” 

“Não tem nada a perder?” 

“Hoje, não mais.” 

"Pela expressão vazia no rosto do homem, eram verdadeiras as suas respostas. A velha pareceu entediada, e sem se despedir largou o homem patético com a sua solidão. 

Quando ela se aproximou do lugar onde eu estava sentado, o cheiro de enxofre a precedeu. 

“Boa noite”, ela falou, enquanto sentava à minha direita. 

Ela então olharia para mim, para os meus olhos, e, como que encontrando afortunadamente um objeto de grande valor, sussurraria as palavras que me soaram como a sentença de algo pior do que a morte: 

“Como vão as crianças?”

 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Véspera



Não é coisa da minha cabeça.

Eu poderia culpar a solidão, a depressão, o pânico, até a carência afetiva e sexual. Mas não é nada disso.

Nenhuma perturbação deixa no ar este cheiro. 

A paranoia não mancha as paredes da casa, nem escapole dos sonhos para rabiscar nas folhas do meu diário mensagens de um ser que não sou eu, com um sangue que não é o meu, em cima da infelicidade que eu jamais revelei a ninguém sofrer.

Eu sei que há mais alguém dentro da minha casa.

Os passos que escuto à noite não são criação minha. Eu não finjo ou imagino um medo de algo que não existe. Este algo existe e fere.

Não consigo sair de casa. Não consigo pedir socorro. A todo instante, a vontade de reagir é minada, contaminada, perfurada até que se quebre e nada mais reste além da paralisia. E seres paralisados não se defendem.

Amanhã é dia do meu aniversário. É com horror que pressinto a celebração que me aguarda.



quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Hóspede





Quando fui fazer intercâmbio, estranhei a dona da casa, todas as noites, se levantar da cama e caminhar pela casa. Sussurrava palavras incompreensíveis como o som das pequenas vidas que não enxergamos quando entramos numa floresta.
 
Hóspede na grande casa, evitei comentar com a proprietária o seu sonambulismo. Não me pareceu educado. 

Como estudasse o dia inteiro, retornava exausto para a casa da boa senhora e dormia até a manhã seguinte sem interrupção. 

Até que os sonhos começaram. 

Imagens perturbadoras envolvendo violência e morte. Desconhecidos invadindo a casa e assassinando com requintes de crueldade a proprietária, e vindo em seguida no meu encalço. Eu despertava assustado, indo no meio da noite verificar se todas as portas e janelas estavam bem fechadas. 

Encontrava apenas a dona da casa. Uma alma perdida e sozinha em passos vagarosos pela sala, mantendo alguma forma de comunicação com algo que existia apenas dentro de sua cabeça. 

Naquela noite, porém, a curiosidade, mãe de todas as descobertas, boas e más, redentoras e terríveis, faria com que eu me aproximasse da velha sonâmbula para tentar ouvir-lhe os sussurros. 

E o que ouvi me estarreceu: 

“Venham. Venham. Eu trouxe mais um. Podem vim. Ele está aqui. Comigo. Carne jovem. Macia.” 

Imediatamente tratei de sacudir, não me importando com o que diziam sobre acordar sonâmbulos, a senhora adormecida. Ela, no entanto, não só continuava naquela espécie de transe macabro, como transformara os discretos sussurros em gritos escandalosos, oferecendo carne macia como se numa feira. E então, atendendo à convocação da mulher, todas as portas da casa se abriram. E eles entraram.


quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Corpos




Foi ontem. 

Enquanto olhava na janela a rua sendo lavada pela chuva torrencial, vi o lixo que entupia os esgotos e a água carregava ladeira abaixo. Imaginei então pessoas, seres humanos no lugar daquelas garrafas pet, daquelas caixas desmontadas, daqueles móveis quebrados e de todos aqueles objetos agora imprestáveis. E, da mesma forma que os objetos, eram agora imprestáveis os corpos que desciam com o pequeno e vigoroso rio que se formara. Corpos moles, malcheirosos quando secassem, prestes a se decompor. 

Então a realidade, morbidamente caprichosa, resolveu acompanhar a minha imaginação. E no meio do lixo esquecível que deslizava no asfalto alagado eu vi um homem indo embora. Um homem velho, magro e nu, da cintura para cima. Um homem morto. 

Tinha ele os pés descalços, um relógio no pulso e feridas que o corpo ia adquirindo ao roçar, de maneira nada libidinosa, com o chão e com as coisas. 

Vi o corpo descer a ladeira até sumir numa curva. Em algum instante pararia, e a chuva deixaria de cair. Seria ele então descoberto, provavelmente pelos vira-latas que percorriam a ladeira em busca de comida e que iriam encontra-la nos pedaços de sua carne morta. Ele não sentiria falta.  
Em minha cabeça, porém, uma questão solitária pesava acima da morte, acima da vida e de como um homem deixa de ser homem para se tornar apenas corpo. Pensando no ex-homem que acabara de ver carregado pelas águas, eu só conseguia imaginar se o relógio em seu pulso ainda funcionava, e que horas estaria marcando.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

O homem que abrigava vermes



Não cabia a mim fazê-la acreditar.

 O apartamento havia sido tomado. Uma infinidade de vermes e toda a sorte de seres rastejantes percorriam os cômodos, subiam pelas paredes e a todo instante era preciso afugentá-los, para que não me subissem pelas pernas da calça. Não sei quantos deles eu matei, mas sei que não fizeram diferença. Eles continuavam se proliferando com a velocidade da mais violenta das pragas, e logo não haveria mais espaço que os contivesse.

 Quando ela chegou, assustada, e viu o apartamento da mesma maneira, limpa e organizada, que havia deixado, aborreceu-se comigo. Fugira do trabalho, gastara dinheiro tomando um táxi, viera correndo para casa, e tudo isso porque eu havia dito ao telefone que o apartamento havia sido tomado por vermes. E onde estavam esses vermes?

Não havia o que responder. Eu não sabia onde eles estavam. Aonde tinham ido parar. Fiquei olhando, pasmo, para ela e para o apartamento, quando, desanimada, ela desabou no sofá. Mais do que nós dois, era o silêncio que ocupava o apartamento.

*

Poderia ter sido um truque, uma falha qualquer, um defeito na minha cabeça. Algum desvario me fizera enxergar aquilo que não existia, e naquele instante eu não sabia se era pior ter o apartamento invadido por vermes ou enxergá-los onde eles não poderiam estar. Durante todo o resto do dia, fiquei inspecionando as paredes à procura de fendas, vãos, buracos onde um único verme pudesse ser encontrado. Mas, da mesma forma como vieram – e eu queria crer que vieram –, eles se foram. A normalidade que infectava o apartamento chegava a doer, então deveria ser em mim que residia o problema. Eu era a falha. Num acesso de infantilidade, fiz com o celular uma selfie no meio da sala e, brincando de encontrar o erro, apontei para minha imagem. Talvez fosse dentro daquela estranha pessoa na foto que os vermes estivessem se escondendo. Habitando desde sempre o infeliz organismo do infeliz personagem que se perdia dentro da própria casa, que se comunicava através de lacunas na linguagem e que amava como quem se dilacera. Eu não saberia mais dizer o quão verdadeiras eram aquelas paredes, aquelas visões limpas de um cenário higienizado, aquela mulher cansada e apaixonante que eu via adormecida na cama de casal. Meus pensamentos não passavam de uma conformada confusão, que eu já não esperava resolver.

À noite, na cama, os vermes voltaram. Acordei com o quarto cheio deles, vagarosos, aos milhares, preenchendo pacientemente aquele que seria o nosso recanto, o nosso ninho, meu e dela. Para minha surpresa, eles vinham avançando numa direção bem definida, subiam a cama amontoando-se uns sobre os outros e, me evitando, foram cobrindo o corpo da mulher ao meu lado.

Ela não acordava. Fiquei olhando os vermes que surgiam entre seus cabelos, que lhe entravam pelas narinas e forçavam a boca e as pálpebras dos olhos a se abrirem para recebê-los. Eu não procurei afastá-los, não procurei salvá-la quando ela desapareceu sobre a massa mole, malcheirosa e fragmentada, pois sabia que a tentativa resultaria em mais um fracasso. Então deixei a noite prosseguir como se fosse um pesadelo, como se aquela não fosse a realidade e como se em breve eu fosse acordar num mundo sem impurezas com você me esperando de braços abertos. 

sábado, 24 de outubro de 2015

Confiança



“Você precisa aprender a confiar nas pessoas.”

Enquanto as palavras dela iam se repetindo e repetindo na minha cabeça dilacerada por pensamentos que não eram os meus, eu a via, da janela, a se afastar da casa.

Eu jamais confiaria nas pessoas. Nem nela. Jamais entregaria a minha paz nas mãos de outro. No quarto, revirando as coisas dela, fui encontrar o cartão com o recado no verso, e isto foi o suficiente para que os sons, as vozes, as imagens sujas dela nos braços de outro, recomeçassem. E dentro da noite eterna que o meu coração abrigava ela, antes luz, agora não passava de mais uma sombra.

“Você viu o meu remédio? Não está atrás do espelho no banheiro.”

Eu respondia que não. Não teria acabado? Ela procurava, procurava. A caixa era nova, dizia. Não poderia ter acabado tão rápido. Havia sumido.

Uma semana depois, o vestido favorito dela aparecera com uma queimadura de cigarro. Mas nenhum de nós fumava.

“Deve ter sido na rua”, falei.

Quando ela começou a achar que alguém a seguia, sugeri tratar-se de algo espiritual. Muitas coisas estranhas seguidas. Talvez ela devesse procurar alguém. Ela não quis.

Numa manhã de domingo, porém, acordei com seus gritos vindos do banheiro. Alguém havia lhe cortado boa parte dos cabelos. Chorava desolada, qualquer pessoa, menos eu, se apiedaria de sua angústia.

Ela começou a emagrecer. Os olhos pareciam ir se afundando dentro do rosto como se os ossos estivessem se desmanchando. Estirada na cama, ela me perguntava o que estava acontecendo, e a cada indagação era mais fraco o som de sua voz.

Ela morreu num domingo. Segurava a minha mão, quando o ar começou a lhe faltar. Fiquei olhando enquanto sufocava, e tudo o que conseguia pensar era em como as pessoas não são aquilo que imaginamos.