segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O carro



Ao sair de carro para o trabalho, nas manhãs de segunda a sexta, eu parava no sinal e lá estava ela. A mulher baixinha, de cabelos muito pretos escorridos na altura dos ombros, vivia naquele ponto de ônibus.


Estava sempre ali. Não teria mais de cinquenta anos, um aspecto frágil e simplório ao se posicionar e vestir, uma humildade gritante no olhar.


Ela cantava. Alguma coisa glorificando o Senhor saía de sua pequena garganta de forma até afinada, porém frágil como ela. Nas letras, preces, agradecimentos e promessas em melodias tristes e arrastadas. A mulher era uma devota.


Como nunca a houvesse visto entrar em qualquer dos ônibus que paravam naquele ponto, um dia a curiosidade me fez sair do carro e perguntar, ao porteiro do edifício em frente, sobre a curiosa figura. Quem era, para onde ia, que ônibus pegava. Por que não saía dali.


“Ela não pega ônibus nenhum”, foi a resposta do porteiro. “Aquela mulher que o senhor está vendo já morreu. Ela foi atropelada ali mesmo, nesse ponto de ônibus, por um motorista embriagado. O senhor não reparou naquelas outras pessoas perto dela, não é? É porque só ela que canta. Aqueles dois senhores, aquele garoto e aquela senhora também foram atropelados. Estão todos mortos.”


Como que confirmando a assombrosa revelação do porteiro, a mulher parou de cantar e as cinco pessoas se voltaram na minha direção.


“Mas como é que nós estamos vendo aquelas pessoas?”, eu perguntei, ainda incrédulo. “Se estamos vivos, não deveríamos estar vendo essa gente, não é?”


“Eu não estou vivo”, o porteiro me interrompeu secamente. “Há seis anos fui atingido por uma bala perdida aqui mesmo, na portaria. Até pouco tempo, ainda havia meu sangue neste chão.”


“Isto não faz sentido”, retruquei. “Até onde sei, eu estou bem vivo. Não deveria estar tendo esta conversa com o senhor.”


“Esse amassado no carro, o senhor conseguiu como?”


“Que amassado? Não tem amassado ne...”


Tinha, sim. Um amassado horrível havia desfigurado toda a dianteira do meu carro. Com direito a farol quebrado e manchas de sangue.


“Até amanhã”, o porteiro então falou, enquanto eu me limitava a entrar no carro e dar a partida rumo a um lugar sem sol.