terça-feira, 3 de novembro de 2015

O homem que abrigava vermes



Não cabia a mim fazê-la acreditar.

 O apartamento havia sido tomado. Uma infinidade de vermes e toda a sorte de seres rastejantes percorriam os cômodos, subiam pelas paredes e a todo instante era preciso afugentá-los, para que não me subissem pelas pernas da calça. Não sei quantos deles eu matei, mas sei que não fizeram diferença. Eles continuavam se proliferando com a velocidade da mais violenta das pragas, e logo não haveria mais espaço que os contivesse.

 Quando ela chegou, assustada, e viu o apartamento da mesma maneira, limpa e organizada, que havia deixado, aborreceu-se comigo. Fugira do trabalho, gastara dinheiro tomando um táxi, viera correndo para casa, e tudo isso porque eu havia dito ao telefone que o apartamento havia sido tomado por vermes. E onde estavam esses vermes?

Não havia o que responder. Eu não sabia onde eles estavam. Aonde tinham ido parar. Fiquei olhando, pasmo, para ela e para o apartamento, quando, desanimada, ela desabou no sofá. Mais do que nós dois, era o silêncio que ocupava o apartamento.

*

Poderia ter sido um truque, uma falha qualquer, um defeito na minha cabeça. Algum desvario me fizera enxergar aquilo que não existia, e naquele instante eu não sabia se era pior ter o apartamento invadido por vermes ou enxergá-los onde eles não poderiam estar. Durante todo o resto do dia, fiquei inspecionando as paredes à procura de fendas, vãos, buracos onde um único verme pudesse ser encontrado. Mas, da mesma forma como vieram – e eu queria crer que vieram –, eles se foram. A normalidade que infectava o apartamento chegava a doer, então deveria ser em mim que residia o problema. Eu era a falha. Num acesso de infantilidade, fiz com o celular uma selfie no meio da sala e, brincando de encontrar o erro, apontei para minha imagem. Talvez fosse dentro daquela estranha pessoa na foto que os vermes estivessem se escondendo. Habitando desde sempre o infeliz organismo do infeliz personagem que se perdia dentro da própria casa, que se comunicava através de lacunas na linguagem e que amava como quem se dilacera. Eu não saberia mais dizer o quão verdadeiras eram aquelas paredes, aquelas visões limpas de um cenário higienizado, aquela mulher cansada e apaixonante que eu via adormecida na cama de casal. Meus pensamentos não passavam de uma conformada confusão, que eu já não esperava resolver.

À noite, na cama, os vermes voltaram. Acordei com o quarto cheio deles, vagarosos, aos milhares, preenchendo pacientemente aquele que seria o nosso recanto, o nosso ninho, meu e dela. Para minha surpresa, eles vinham avançando numa direção bem definida, subiam a cama amontoando-se uns sobre os outros e, me evitando, foram cobrindo o corpo da mulher ao meu lado.

Ela não acordava. Fiquei olhando os vermes que surgiam entre seus cabelos, que lhe entravam pelas narinas e forçavam a boca e as pálpebras dos olhos a se abrirem para recebê-los. Eu não procurei afastá-los, não procurei salvá-la quando ela desapareceu sobre a massa mole, malcheirosa e fragmentada, pois sabia que a tentativa resultaria em mais um fracasso. Então deixei a noite prosseguir como se fosse um pesadelo, como se aquela não fosse a realidade e como se em breve eu fosse acordar num mundo sem impurezas com você me esperando de braços abertos.