quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Corpos




Foi ontem. 

Enquanto olhava na janela a rua sendo lavada pela chuva torrencial, vi o lixo que entupia os esgotos e a água carregava ladeira abaixo. Imaginei então pessoas, seres humanos no lugar daquelas garrafas pet, daquelas caixas desmontadas, daqueles móveis quebrados e de todos aqueles objetos agora imprestáveis. E, da mesma forma que os objetos, eram agora imprestáveis os corpos que desciam com o pequeno e vigoroso rio que se formara. Corpos moles, malcheirosos quando secassem, prestes a se decompor. 

Então a realidade, morbidamente caprichosa, resolveu acompanhar a minha imaginação. E no meio do lixo esquecível que deslizava no asfalto alagado eu vi um homem indo embora. Um homem velho, magro e nu, da cintura para cima. Um homem morto. 

Tinha ele os pés descalços, um relógio no pulso e feridas que o corpo ia adquirindo ao roçar, de maneira nada libidinosa, com o chão e com as coisas. 

Vi o corpo descer a ladeira até sumir numa curva. Em algum instante pararia, e a chuva deixaria de cair. Seria ele então descoberto, provavelmente pelos vira-latas que percorriam a ladeira em busca de comida e que iriam encontra-la nos pedaços de sua carne morta. Ele não sentiria falta.  
Em minha cabeça, porém, uma questão solitária pesava acima da morte, acima da vida e de como um homem deixa de ser homem para se tornar apenas corpo. Pensando no ex-homem que acabara de ver carregado pelas águas, eu só conseguia imaginar se o relógio em seu pulso ainda funcionava, e que horas estaria marcando.