sábado, 20 de fevereiro de 2016

O ADVERSÁRIO - Capítulo 1




Estou sozinho e a meus pés dorme uma cidade que me assombra.


Rio de Janeiro.


É noite alta. Os pombos que se acomodavam aqui em cima voaram quando cheguei. Acordados pelo intruso. Lá embaixo agora a noite é mansa, quieta, boa de dormir. Você só precisa arrumar um lugar para encostar a cabeça e ela faz o resto do serviço. Há noites que são assim mesmo. Vão se chegando, envolvendo, e você nem percebe. Quando se dá conta já caiu nos braços generosos de Morfeu.


No começo você é embalado em um estado de sonolência que não é sono nem vigília, e é melhor do que ambos. Aquele estado antes do pulo que se dá quando ferra-se no sono. Pulo que geralmente acorda quem dorme em ônibus, e que a outra pessoa na cama costuma chamar de coice, quando vem de você. Mas se você não acorda com o coice, então está apto a atravessar a fronteira e adormecer de verdade. Você sai da casca que é a realidade e chega ao miolo, que é sonho. Nessa hora Morfeu abre os braços, e você, no lugar de cair, flutua. E não o vê. É nesse ponto que toda a cidade, que meus olhos não conseguem ver sem assombro, parece estar submersa agora. Atravessou a fronteira e dormirá bem. Por toda a noite. Como num  berço. Noite-mãe.


Isso lá embaixo. Aqui a história parece ser outra.


Venta forte no terraço do edifício. O ar se desloca nervoso e ao passar por mim murmura ofensas em meus ouvidos. Aqui nesse espaço, nesse instável parapeito onde achei de me alojar, a noite torna-se madrasta. Uiva como loba, tece intrigas como uma aranha carniceira, cuspindo ventos que rezam por tirar-me o equilíbrio. Por fazer-me despencar dos quatorze andares que separam este meu corpo da calçada poluída lá embaixo.


A vontade é uma só. Pular. Saltar e dar por encerrada, antes que o dia amanheça e eu seja descoberto, toda essa história alucinada e desprovida de sentido. Antes que recomecem as sombras e as vozes e as ameaças e eu novamente me veja encurralado entre uma parede e o cano de um revólver.


Nunca antes ameaçado de maneira tão contundente. As palavras usadas ainda bem frescas na cabeça. Mas agora já não há a certeza de que foram realmente ditas, ou se ainda é o pesadelo que não me deixa acordar. Observo a cidade terrível duvidando de todos os seus habitantes. Temendo cada sonho que possam estar produzindo agora. O efeito que poderão ter sobre meu organismo alterado. Não vejo ninguém nas janelas, conspiram. Desconfio de tantas e tão desordenadas construções. Desisti de acordar, a cada abrir de olhos era pior a realidade, maior o fantasma. Imagino se não estou morrendo. Se a morte não é o sonho que conseguiu te engolir de vez. Desvario. Meus pensamentos se fragmentam.


Morrer.


Aquilo que sempre nos parece tão longe. Aquilo a que, embora certo, jamais estamos preparados. Eu não estava, quando isso tudo começou. E mesmo agora, agora que estou tão próximo, continuo não estando.


Difícil conter a culpa, o medo e o remorso. Tudo junto. Não há cabeça que agüente. Como não bastasse, outra vez o vulcão explode e arrasa, soterra, destrói a decadente cidade onde moram minhas poucas lembranças.


E novamente lá estou no mesmo maldito restaurante.


E novamente tudo acontece. Como da primeira vez.


Já chego mesmo a duvidar se chegou a existir uma primeira vez, ou se isso vem se repetindo desde sempre. Se minha vida não foi todo o tempo essa alucinação sofrida da qual agora resolvo fugir, já que não a posso enfrentar e nem tampouco sobreviver em sua convivência.


Em pé na beirada do edifício, deixo-me balançar pelo vento. Posso até ouvir a sua perversa felicidade sussurrando. Nem disfarça mais.


Mas ainda tenho medo. Hesito. A decisão ainda não é unânime. Procuro então me convencer, dizendo a mim mesmo para ir logo. Que Natália me espera lá embaixo. Vai, pode ir. Não se sente nada durante a queda. Quando tocar o chão, já estarei morto. Minhas pernas tremem e desobedecem. O tempo ao meu redor estanca e observa.


É nesse instante parado que vejo a mulher no prédio à minha esquerda.  No terraço, sozinha, como eu estou agora. Nova, parece mais do que eu. Agasalhada, com um embrulho nos braços. Faz mesmo frio. Não me vê, apesar de minha posição suicida necessariamente atrair olhares. Fosse dia, e uma multidão estaria amontoando-se lá embaixo para me ver cair. Essa menina, não. Ou é por natureza desligada, ou me ignora solenemente.


Quando ouço o distante choro de uma criança é que entendo o embrulho que traz nos braços.


E me sinto sufocar, quando os movimentos seguintes dão uma sombria indicação das intenções da mulher.


Ela carrega até a beirada do prédio o embrulho que chora. Os braços estendidos ao vazio como que oferecendo o que trazem. O vento cada vez mais forte parece em diabólico êxtase, pela mesma razão por que agora me sinto gelar de horror.


Ela beija a cabeça da criança, que continua chorando. Então, lança-a de encontro ao vazio.


A enorme massa de horror que me sufocava escapa de uma só vez, arranhando-me a garganta com violência. Grito. Por muito pouco não caio das alturas junto com a criança.


A mulher então me vê. Perde alguns minutos ouvindo-me gritar até que também ela sobe no parapeito do prédio. Não sei mais a proporção que tomou meu desespero. Grito-lhe que não, que não faça isso, mas é como se enviasse uma mensagem a uma terra longínqua de idioma desconhecido.


Quando a mulher se atira atrás da criança, minhas pernas fraquejam e me ajoelho no parapeito, curvado, chorando, recusando-me a ver, sentir, viver.


Mas vivo. Por alguma infeliz razão as duas mortes seguidas terminam por afastar-me de protagonizar a terceira. Caio do parapeito, mas de volta ao terraço, onde por instantes permaneço chorando vidas que, como a minha, nada valem.


Mortes demais para uma noite, o vento parece sussurrar-me com satisfação. A minha vez ficou para outra oportunidade.


É preciso sair dali. Antes que amanheça, que me descubram ou que eu mesmo estoure com a imagem da criança caindo que não me sai da cabeça. Agora companheira das imagens horríveis que os últimos meses me proporcionaram.


Desço correndo, caindo, as escadas até o elevador. Continuo vendo a criança e a mulher. Pensando em ir para casa, apesar de lá não haver mais segurança. Logo o apartamento estará sendo revirado e a morte estará no meu pé. Impossível ficar alheio à ironia das coisas: numa semana, tinha uma namorada e fazia planos de morarmos juntos; na seguinte, não tenho onde morar, minha namorada está morta e um assassino quer a minha cabeça.


Quando entro no apartamento que divido com um amigo não há ninguém. Marcelo já fugiu levando todas as suas coisas. Vai ficar sumido por uns tempos, e para nossa própria segurança não saberemos nada um do outro. As minhas coisas ainda estão aqui. Não ia precisar delas para me atirar do alto de um edifício. Mas agora a situação é outra.


Não sei que comichão é esta dentro de mim que me diz para permanecer vivo. Nem sei por que dou ouvidos a ela. Já perdi a mulher que amava, e minha morte é só uma questão de tempo. O homem que quer me matar é um profissional da morte, e cedo ou tarde vai me achar, tem os meios dele para isso. Não vejo possibilidades de fugir, muito menos de enfrentá-lo, e mesmo assim pareço resolvido a teimar contra o inevitável. Que seja.


A primeira coisa que pego é minha agenda com telefones. Procuro também qualquer papel solto ou anotação que indique meus conhecidos. Faço tudo muito rápido, espero não estar esquecendo nada. Numa velha mochila, coloco umas roupas, remédios, alguma coisa para comer, walkman, disquetes de computador, coisas de valor que possa vender em caso de necessidade. Vontade de levar pelo menos alguns CDs, mas não. Olho para o computador. Marcelo já deve ter apagado todos os arquivos, mas é melhor dar uma olhada. Faço tudo muito rápido, e a demora da máquina para ligar me enerva. Não paro de olhar a porta à minha frente.


Milhões de pensamentos ao mesmo tempo. Fazer o quê agora, fugir pra onde, permanecer no Rio ou me mandar para o interior, para outro Estado? Fosse um filme, e eu esperaria o assassino, armaria uma emboscada. Mas não sou nenhum idiota, apesar da burrada que fiz.


Novamente me perco em lembranças. O restaurante. Natália. Depois o hospital. E o edifício. A criança. Repetidos desastres acontecem e a todos presencio, todas as vezes. Em algum canto bem pequeno, chego a pensar se algum dia terei sossego de novo.


Verifico o correio eletrônico. Duas mensagens, que apago sem ler. Começo a ficar com sono. Mau sinal. Corro até a cozinha, acho café na garrafa. Está frio, mas vai assim mesmo. Bebo sem açúcar, como se fosse água. Preciso sair logo daqui. Perdendo tempo demais. Uma última verificada no apartamento, na verdade uma despedida, e ando até a porta.
Então toca o telefone.


Eu já estava com a chave na porta, pronto para sair. Indecisão absurda, inexplicável, infantil, mas que me paralisou completamente. Procuro raciocinar. Não pode ser nenhum amigo, todos foram avisados de que tanto eu quanto Marcelo faríamos uma viagem. Não pode ser ninguém, em verdade. Melhor deixar tocando.


Mas eu atendo.


- Alô.


- Zeca, é Nicole!


Tomado pela surpresa. Nicole é uma velha amiga, ex-namorada, morando nos Estados Unidos com o marido faz quase um ano. De lá pra cá, temos nos comunicado pouco, às vezes por telefone, quase sempre por Internet. A ligação me proporciona o primeiro sorriso em dias.


- Nicole, onde você está?


- Estou no Rio, cheguei há duas horas. Já te liguei um monte de vezes e ninguém atendeu, já enviei mail e nada. Cadê o Marcelo?


- Marcelo viajou. Eu também estava saindo...


- Viajou, pra onde? E você? Como está a Natália?


- Está bem, o Marcelo foi para...


- Olha só, eu estou no Hotel Camilo, apartamento 601, vou ficar até quarta, vê se vocês me procuram ou a gente marca de se ver, estou com saudades.


- Sim, vamos marcar, sim, vou falar com todo mundo...


- Que barulho estranho é esse no telefone, Zeca? Tem alguém na extensão?


- Não, estou sozinho. Mas vamos marcar. Eu entro em contato.


- Tudo bem, vou te deixar em paz que eu tô vendo que você precisa sair. Beijo grande.


- Beijo, Nicole.


- Dá um beijo no Marcelo, também.


- Eu dou. Tchau.


Desligo pensando que seria bom conversar com Nicole. Com qualquer pessoa, na verdade, mas não é difícil prever que os próximos dias serão solitários. Abro a porta, após me assegurar pelo olho mágico de que ninguém me espera lá fora. O caminho parece limpo. Não sei por que, mas falar com Nicole deu-me algum ânimo. Como se no mundo devastado em que entrei houvesse janelas, de onde é possível ao menos ver a paisagem lá fora. Chego até a pensar na possibilidade de estar me preocupando à toa. Quase me deixo levar pelo excesso de otimismo.


O telefone toca de novo e retorno da porta para atender.


- Alô.


Esperava a voz de Nicole, mas ninguém diz nada.


- Alô?


Desligo imediatamente o telefone, afinal dando-me conta de minha própria estupidez.


Era ele.


“Que barulho estranho é esse no telefone? Tem alguém na extensão?”


Também ele.


Reviro as listas telefônicas. Preciso do número do Hotel Camilo. Minhas mãos tremem. Encontro, mas não posso ligar daqui. Ele está ouvindo.


Saio. Correndo.


Minha burrice pôs em risco a vida de Nicole.