Capítulo 2

O telefone só dava sinal de ocupado.

Teria de ir até o Hotel Camilo e tirar Nicole de lá. Perguntava a mim mesmo de que maneira faria isso, enquanto dava partida em minha motocicleta. Ou inventava uma desculpa que fosse muito bem elaborada, ou dizia a verdade. Escolher uma das opções era o que confundia e atormentava.

Mas atormentava-me também a desagradável impressão de estar sendo seguido. O que era pouco provável, visto que Casemiro, o assassino que agora me queria morto e de quem eu estava fugindo, decerto sabia exatamente onde me encontrar. Talvez até já estivesse lá, à minha espera. Mesmo assim a impressão permaneceu, firme como uma rocha, e procurei ir o mais rápido que era possível, não parando em nenhum dos sinais vermelhos que me surgiam à frente. Seguia tenso, temeroso, mas estranhamente decidido. Resolvera que a sucessão de mortes, amontoando-se ao meu redor em menos de um mês, havia se encerrado com a mulher no terraço. A próxima, se houvesse, teria de ser a minha. De ninguém mais.

Parei em frente ao hotel, mas do outro lado da rua. Não sem antes averiguar se a figura magra, comprida, de poucos cabelos e barba por fazer, que para mim se tornaria a encarnação do próprio diabo, estava por perto. Provavelmente estava, mas não o vi. Talvez escondido, apontando-me uma arma. Talvez  lá dentro, no hotel. Via-o em todos os rostos enquanto esperava na recepção que me anunciassem, e a cada passo que dava para dentro em direção ao apartamento de Nicole imaginava-o à espreita atrás de uma porta, numa curva do corredor ou pelas escadas. Era improvável que ele tentasse qualquer coisa dentro do hotel, pouco seguro. Mas eu já conhecia a fama de Casemiro, e seus últimos atos indicavam que não era de todo absurda a possibilidade de uma ação em local aberto e movimentado.

Foi então que me dei conta, já na porta do apartamento de Nicole, de que não havia visto uma pessoa sequer circulando pelos corredores, nem ouvi barulhos de qualquer natureza. Onde estavam os funcionários, os hóspedes?

Não pude prosseguir com minha desconfiança, pois naquele instante a porta abriu-se e o sorriso de Nicole proporcionou-me um imenso sentimento de alívio. Puxando-me para o interior do apartamento, a boa amiga a princípio abraçou-me com o entusiasmo das pessoas queridas que há muito não se vêem. Depois estranhou minha presença ali.

- Mas você não disse que tinha de sair?

- Eu tinha. E tenho. Só que preciso que você venha comigo. Está ocupada?

- Ocupada? Não.

- Ótimo. Então vamos arrumar suas coisas que eu vou tirar você deste hotel. Ligue pra recepção e peça o check-out.

- O quê?

Naquele instante não vi solução melhor para tirar Nicole do Hotel Camilo. Agitá-la, falar muito e explicar pouco, ao mesmo tempo em que ia arrumando sobre a cama as roupas e demais objetos pessoais que encontrava pela frente, me pareceu a maneira de obter melhores resultados em menos tempo. Nicole, embora obviamente relutasse, estranhasse meu incomum comportamento, terminou por julgar que se tratava de algum tipo de surpresa ou coisa parecida, ajudando-me assim na arrumação.

Terminada esta parte, viria nova preocupação: sair do apartamento, com Nicole e as bagagens, pelo corredor vazio. Não havia no entanto muito o que pensar. Após abrir a porta e olhar os dois extremos para onde o corredor se estendia, peguei-a pela mão e levei-a até o elevador. Nicole divertia-se com a maneira cautelosa com que eu andava e procurava fantasmas ao redor. Decerto pressupunha alguma maluquice ou brincadeira de minha parte, e quanto mais tempo permanecesse nessa ilusão melhor seria.

A demora do elevador, no entanto, seria novo motivo para preocupar-me.

- Parou – concluiu Nicole.

- Não. Não é possível.

- Como, não? Não sai do segundo andar.

Nicole tinha razão. Por mais que se chamasse, o elevador não subia. Era um mau sinal que terminou por encerrar a minha paciência, levando-me a agredir com um murro a porta do elevador.

- O que é isso? – Nicole assustou-se.

Teríamos de descer pelas escadas. Ficar mais expostos, mais vulneráveis do que já estávamos. O lobo nos queria em sua garganta, e como bons carneirinhos a ela nos encaminhávamos. Pensava nisto ao empurrar com o corpo a pesada porta que levava do corredor à escada, e ao ouvir seu arrastado ranger ecoando por todos os andares. Foi então que cogitei deixar Nicole ali, no corredor, e seguir sozinho. Seria a opção mais segura, se eu ao menos soubesse quais eram os planos de Casemiro. Alguém que, para matar apenas uma pessoa, leva junto toda a família da vítima, não poderia jamais ser considerada como previsível. Acabei resolvendo por levar Nicole comigo.

Nicole, por sinal, começava a impacientar-se com meu comportamento e com a ausência de explicações. Reclamava, e quando começou a aumentar o tom de voz tive de lhe pedir, rispidamente, que calasse a boca. Ela não calou, mas pelo menos baixou a voz.

- Que brincadeira mais babaca - ia resmungando. Depois de burro velho, dando pra brincar de polícia e ladrão... Quem mais está metido nessa palhaçada, o Marcelo?

Nesse instante ela calou-se, e eu também, ao ouvir o prolongado ruído de uma das portas se abrindo, mais prolongado ainda devido ao eco que atravessou nossos ouvidos e subiu pelas paredes como uma onda de ar quente. Ficamos imóveis sobre os degraus ouvindo a porta abrir-se, aparentemente no andar abaixo daquele em que nos encontrávamos, para em seguida fechar-se com um estrondo.

Esperamos. Impossível saber se as mãos que moveram a porta o fizeram para entrar ou para sair. Eu mal respirava, a fim de que o som do ar nas narinas não me impedisse de escutar qualquer movimento vindo de baixo. Temia o pior, temia os passos do demônio subindo o inferno para nos buscar, e contra ele só dispunha das mochilas que carregava, minhas e de Nicole. Esperava a qualquer instante a figura de Casemiro surgindo na curva da escada, e não conseguia pensar em nenhuma solução além de atirar-me sobre ele e enfrentá-lo, mesmo em desvantagem, mesmo desarmado.

Solução obviamente guiada pelo desespero. Antes que pudesse vê-la tornar-se realidade, porém, já estava puxando Nicole e saindo às pressas dali. Não tencionava saber que conseqüências teria meu ato de bravura, ou de insanidade. Tampouco pretendia me certificar da presença ou não de Casemiro naquele hotel. Só importava a minha própria presença ali dentro, que esperava eliminar o quanto antes.
Pensava nisso enquanto a porta batia às minhas costas. De volta aos corredores, a esperança de encontrarmos alguém seria frustrada uma segunda vez. Tudo estava estranhamente vazio e silencioso, e, exceto por um carrinho de camareira abandonado no corredor, não havia qualquer sinal de funcionários. Uma placa indicava estarmos no segundo andar, o que nos levou a verificar os elevadores. Talvez não estivessem verdadeiramente parados, talvez uma porta deixada aberta, e logo poderíamos descer. O que encontramos, no entanto, serviu para dar-me a certeza de que meu perseguidor se encontrava naquele hotel: colocado estrategicamente no chão, um sapato feminino bloqueava a porta de um dos elevadores, impedindo seu funcionamento. No outro elevador a mesma cena se repetia, mas no lugar do calçado era uma caixa de primeiros socorros que o segurava naquele andar.

A mensagem era clara, e eu não iria esperar o autor para discutí-la. Tratei de entrar no elevador com uma Nicole já sem qualquer vestígio de paciência e apertar o botão do térreo. Embora ainda assustado, não deixei de aproveitar um certo sentimento de alívio por enfim sair dali.

Mas qual não foi a minha surpresa quando, ao invés de descer, o elevador subiu.

- Merda! - gritei, o punho fechado se chocando contra a parede do elevador. Merda, merda!

- Pára com isso! - gritou Nicole.

O antigo elevador foi subindo lenta e dolorosamente, a cada andar aumentando em mim a certeza de que Casemiro lá estaria, no último, à nossa espera. A morte após a porta. Colocando-me à frente de Nicole, posicionei-me nos fundos da pequena cabine e esperei que o elevador chegasse, a grade de metal se abrisse e a porta de madeira revelasse o pior.

No décimo andar o elevador parou. Não havia mais para onde subir.

Ansiosos, ficamos esperando que algo acontecesse. Mas a porta não se abriu, e nem o pior se revelou. Por alguns segundos devo ter ficado imóvel, desorientado, mas logo apertava o botão para que o elevador retornasse ao térreo. Tremia da cabeça aos pés. Nicole percebeu, e sua impaciência enfim deu lugar à desconfiança de que toda aquela situação poderia não ser uma brincadeira. Quis saber o que estava acontecendo. O que eu havia aprontado. Fez cara de choro quando não lhe dei respostas, e só consegui prometer-lhe que contaria tudo, mas que antes precisávamos sair dali, que eu não suportaria um segundo a mais naquele diabo de hotel.

A recepção estava cheia de gente. Como se todos os funcionários e hóspedes ali estivessem reunidos, e o restante do prédio fosse propositalmente abandonado para que o assassino pudesse brincar conosco sem ser interrompido. Verifiquei todos os rostos, não reconheci Casemiro em nenhum deles. Enquanto Nicole pagava a curta estadia, fui procurá-lo na rua, e em algum defeito em minha moto. Atentava para a necessidade de combustível, quando ela se aproximou após sair do Hotel Camilo e atravessar a rua. Já não aparentava impaciência, tampouco medo. Seu rosto estava sério e transpirava cansaço com toda aquela inesperada correria.

-  Para onde vamos agora? - falou bem baixo, enquanto prendia o cabelo num rabo de cavalo.

- Sair daqui. Você vai ver quando chegarmos.

- Meu marido vai me ligar de noite. Estranhará quando disserem que já saí do hotel.

- Ligaremos para ele antes disso - falava enquanto ia mexendo na moto.

- Zeca, o que está acontecendo...?

Meus olhos então procuraram os dela. Nicole estava verdadeiramente angustiada, o que me inundou de remorsos por metê-la em toda aquela situação. No mesmo instante os olhos de Natália me vieram à cabeça, e junto com eles a vontade de largar tudo, de sentar ali mesmo no chão e chorar. Mas não era o momento.
Esquecesse, ainda tinha muito o que fazer.

A moto estava em ordem, faltando apenas terminar de encher o tanque. Procurando satisfazer a curiosidade de Nicole, disse-lhe que estava com problemas e lamentava muito tê-la envolvido neles, mas que tudo seria resolvido logo. Acabei sendo surpreendido pela reação dela.

- Antes ficasse calado - reclamou. Se quer me poupar, ao menos invente uma desculpa convincente. Ou me conte logo tudo de uma vez. “Estou com problemas”, isso eu posso ver muito bem, não preciso que você me diga. E pelo visto é coisa séria mesmo, porque grampearam até teu telefone. O que é, Zeca, se meteu com o tráfico, descobriu alguma falcatrua do governador e agora estão querendo te matar? Hem? O que é que você andou fazendo?

- Quem dera fosse algo tão heróico - lamentei, subindo na moto e esperando que ela fizesse o mesmo.

Depois que dei a partida e arranquei, vieram alguns minutos de silêncio. Nicole então diria, a cabeça aninhando-se em minhas costas:

- Todo mundo erra.

Fez isso decerto procurando dar-me algum conforto. Quase conseguiu.

Mas a impressão de que estava sendo seguido ainda era mais forte.